Entendendo as mutações do coronavírus

Descontrole da pandemia favorece o surgimento de novas variantes do Sars-CoV-2, que circulam livremente no Brasil

Desde seu surgimento, o Sars-CoV-2 não é mais o mesmo. Assim como acontece com diversas espécies, os vírus também estão sujeitos a mudanças em seu material genético: as mutações. Dados da plataforma Gisaid [Global Initiative on Sharing All Influenza Data] mostram que o número de genomas depositados do causador da COVID-19 já passa de um milhão — mais do que já existiu para qualquer vírus sequenciado no mundo, sobretudo em tão pouco tempo.

A palavra “mutação” pode, em um primeiro momento, causar espanto. Mas, na verdade, trata-se de um processo natural. Estima-se que o coronavírus sofra uma ou duas novas mutações a cada mês, entre substituições, adições e deleções de bases. Carolina Voloch, pesquisadora do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ, destacou que o surgimento de novas versões do vírus é um comportamento previsível. A essas novas versões a ciência dá o nome de variantes — e elas são apenas a continuação de um processo de evolução que já estava acontecendo.

“O Sars-CoV-2 se diferencia ao longo do tempo, é um processo natural observado nos vírus em geral. As mutações no Sars-CoV-2 são, portanto, algo esperado. Mas o que precisamos levar em conta são os desdobramentos”, revela.

Por vezes, um conjunto de variantes se relaciona entre si, compartilhando características genéticas semelhantes e uma origem em comum. Neste caso, estamos falando do conceito de linhagem viral. Muitos especialistas trabalham dia e noite sequenciando amostras do vírus para entender como ele está se transformando ao longo do tempo. Por meio do acompanhamento e da vigilância genômica, é possível identificar a trajetória e o comportamento dessas linhagens.

Ao longo do tempo, com a evolução do vírus original, diversas linhagens se espalharam pelo mundo. A partir delas, é possível entender a trajetória e o comportamento do Sars-Cov-2 | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

O Sars-CoV-2 carrega em seu núcleo um longo filamento de material genético conhecido como RNA — ácido ribonucleico. Ao longo dessa estrutura, mais de 30 mil bases nitrogenadas se organizam em trincas, que codificam os aminoácidos. À medida que o vírus se replica, pequenos erros na transcrição do RNA podem ocorrer, como a substituição, adição ou deleção de alguma base dessa grande sequência, e, em alguns casos, isso pode alterar o aminoácido correspondente. Segundo Voloch, essas mutações são aleatórias e, na maioria das vezes, sequer têm efeitos relevantes.

No entanto, algumas podem trazer novas configurações para o vírus, causando-lhe benefícios ou prejuízos. No geral, quando a mutação traz desvantagem, a tendência é que a variante não consiga sobreviver, por uma questão de seleção natural. A preocupação surge quando uma mutação passa a representar uma vantagem para o vírus a ponto de alterar desfechos clínicos — como o aumento da transmissão, o agravamento da doença, a mudança de faixa etária ou o escape das defesas imunológicas.

Logo no início da pandemia, em março de 2020, a versão original do Sars-CoV-2 sofreu uma mutação denominada D614G — na posição 614 do filamento, o aminoácido ácido aspártico (representado pela letra D) foi substituído, aleatoriamente, por uma glicina (G). Estudos posteriores indicaram que, com essa mutação, o vírus passou a se ligar com mais afinidade ao receptor da célula humana. Pouco tempo depois, a linhagem tornou-se dominante em todo o mundo.

Na mutação D614G, o ácido aspártico (D) foi substituído por uma glicina (G) — isso representou uma vantagem para o vírus | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

No caso do Sars-CoV-2, quando olhamos para o número de mudanças e o tamanho do genoma do vírus, as sequências ainda guardam entre si mais de 95% de semelhança. Essa estabilidade do vírus se deve a um fator peculiar: a presença de uma proteína que tenta corrigir os erros de replicação. Em geral, os vírus com genoma RNA tendem a evoluir de forma mais rápida justamente porque a enzima que replica o material genético viral faz isso com uma alta taxa de erros ao fabricar as cópias. No entanto, o coronavírus é uma exceção a essa regra, sendo capaz de realizar revisões genéticas simples — mas não suficientes para impedir que as mutações continuem a acontecer.

Devemos esperar tantas mutações preocupantes?

Apesar de ser um comportamento previsível, algumas novas variantes do Sars-CoV-2 acumularam mutações significativas em curtos períodos de tempo, causando preocupação em todo o mundo. Elas apresentam, em geral, alterações em diversos trechos do genoma, mas o que mais chama atenção dos pesquisadores são aquelas detectadas na sequência gênica da proteína spike — ou proteína S.

Ao infectar o organismo humano, o vírus se conecta às nossas células a partir dessa proteína. Ela tem o formato de espícula (por isso o nome “spike” em inglês) e funciona como uma garra, capaz de se encaixar ao receptor das células-alvo e permitir a entrada do vírus. Por esse motivo, é o principal foco das vacinas — que, na maioria dos casos, induzem a produção de anticorpos com um formato específico para neutralizar a proteína S, impedindo sua fixação na célula.

Mutações ao longo da cadeia de RNA ocasionam uma série de alterações associadas a diversas partes da estrutura viral. No entanto, algumas mutações na proteína S passaram a preocupar pesquisadores | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

Estudos científicos já indicam que algumas variantes do Sars-CoV-2 apresentam exatamente as mesmas mutações, ou mutações nas mesmas regiões gênicas. Para Voloch, esse acúmulo de mutações — que ocorrem em diversas variantes do vírus, em períodos e localidades distintos — pode indicar uma convergência evolutiva do micro-organismo. Há algumas de especial interesse na proteína S:

– E484K> refere-se a uma troca em que o ácido glutâmico (E) é substituído por uma lisina (K) na posição 484. Estudos preliminares indicam que a mutação pode impactar a capacidade neutralizante dos soros.

– N501Y> mudança de asparagina (N) para tirosina (Y) na posição 501. Estudos preliminares indicam que essa mutação estabelece maior força de interação molecular com o receptor da célula.

– K417N> mudança de lisina (K) para asparagina (N) na posição 417. Estudos preliminares indicam que essa mutação permite maior afinidade entre o vírus e a célula.

Todas essas mutações se concentram dentro de uma região específica da proteína S chamada domínio de ligação de receptor (RBD). Alguns trabalhos vêm levantando a hipótese de possível escape a anticorpos da resposta imunológica, maior transmissibilidade (aumento da carga viral) e maior letalidade em variantes com essas mutações. No entanto, é importante destacar, neste caso, que estudos epidemiológicos ainda estão sendo revisados e outros ainda precisam ser feitos para confirmar, de fato, o papel dessas alterações no comportamento do Sars-CoV-2.

Variantes já circulam no país

A pandemia de COVID-19 no Brasil teve início no primeiro trimestre de 2020. Nesse período, já começavam a circular no país as linhagens B.1.1.33 e B.1.1.28 — esta última, por sua vez, deu origem à P.1 (em Manaus) e à P.2 (no Rio de Janeiro). Em seguida, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) identificou a N.9 (em Sorocaba), assim como parceria entre UFMG e UFRJ descobriu outra possível nova variante em Belo Horizonte — que, se confirmada, poderia vir a ser a P.4. E essa contagem não para por aí. Recentemente, pesquisadores descobriram que a P.1 já sofreu mutações a ponto de criar uma nova variante, a P.1.2. Segundo a Fiocruz, há 110 variantes em circulação no Brasil.

Algumas delas suscitam um pouco mais de preocupação por parte dos pesquisadores, uma vez que apresentam um conjunto de mutações que pode levar ao aumento da transmissibilidade ou alteração prejudicial na epidemiologia da COVID-19; aumento da virulência ou mudança na apresentação clínica da doença; ou, ainda, diminuição da eficácia das medidas sociais e de saúde pública ou de diagnósticos e vacinas — por isso, são denominadas de variantes de preocupação (VOC, na sigla em inglês). De acordo com a OMS, atualmente há quatro linhagens em circulação que merecem atenção: B.1.1.7, B.1.351, P.1 e a recém-classificada B.1.617.


Origem: Reino Unido

Reportada em: setembro/2020

Países reportados: 114

Mutações de destaque: N501Y

Possíveis preocupações: maior transmissibilidade

Origem: África do Sul

Reportada em: outubro/2020

Países reportados: 68

Mutações de destaque: N501Y, E484K, K417N

Possíveis preocupações: maior transmissibilidade e escape da resposta imune

Origem: Brasil (Manaus)

Reportada em: dezembro/2020

Países reportados: 37

Mutações de destaque: N501Y, E484K, K417T

Possíveis preocupações: maior transmissibilidade e escape da resposta imune

Origem: Índia

Reportada em: outubro/2020, mas classificada como VOC apenas em maio/2021

Países reportados: 44

Mutações de destaque: E484Q, L452R

Possíveis preocupações: maior transmissibilidade e escape da resposta imune


Variantes não são a causa do descontrole — mas a consequência

Já se sabe que as mutações ocorrem aleatoriamente. No entanto, quando o vírus encontra situações propícias para sua proliferação, estamos favorecendo o surgimento de novas variantes. A equação é simples: o somatório de um grande número de casos diários, testagem insuficiente (e, por consequência, sequenciamento ainda menor), relaxamento de parte da população em relação à manutenção dos cuidados e ineficiência dos governos em conter a disseminação só poderia levar o Brasil a um resultado possível — o de covidário, com crescente número de infecções e mortes.

Para Carolina Voloch, não podemos simplesmente responsabilizar uma variante pela catástrofe sanitária por que passa o país. A professora explica que as novas variantes só surgiram porque vivemos em um cenário onde há um descontrole total da situação epidêmica — a exemplo do que ocorreu no Reino Unido, Estados Unidos e África do Sul.

“As novas variantes aumentaram em número justamente no momento peculiar em que as pessoas já estavam relaxando em relação à pandemia: nas ruas, sem máscara, em festas, restaurantes. É uma janela de oportunidade”, comenta.

A pesquisadora destaca que, mesmo com a proliferação das novas variantes, os cuidados para contê-las são os mesmos empregados para conter o Sars-CoV-2 original. Segundo ela, “o vírus está aí para todo o mundo. Há países que conseguem controlá-lo e há outros que não”.

“Uma coisa é certa: as variantes vão acontecer. A questão é em quanto tempo. Se conseguíssemos controlar a pandemia, elas provavelmente surgiriam em outro momento, mais tardiamente, ou uma de cada vez, proporcionando maior possibilidade de controle do espalhamento dessas novas variantes”, prossegue.

Somada à equação está também a vacinação a passos lentos. Segundo a plataforma Our World in Data, até a publicação desta matéria foram vacinadas no país cerca de 37 milhões de pessoas, o equivalente a pouco mais de 17% da população — se forem contabilizados somente os casos que já receberam a segunda dose, esse número chega a quase 9% . “Assim, ao mesmo tempo em que se forma uma barreira seletiva contra o vírus, damos tempo para ele atravessá-la. Como ainda há muitas pessoas suscetíveis, a preocupação é de que o vírus acumule novas mutações e se torne resistente a essa barreira”, pondera Voloch.

Testar, isolar, sequenciar

Para piorar a situação, o Brasil é um dos países que realiza menos testes para a COVID-19. Segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde e atualizados até 7/5, desde o início da pandemia foram realizados apenas 31.085.143 testes. A nível de comparação, os Estados Unidos já realizaram mais de 363 milhões. Em 28/4 — quase 14 meses desde o início da pandemia — , o Ministério da Saúde anunciou que o governo federal lançará um programa de testagem para a população.

De acordo com Voloch, programas de testagem em massa são fundamentais para ajudar a conter o avanço da pandemia, justamente porque as pessoas se contaminam e, mesmo assintomáticas, transmitem o vírus para outras pessoas. Para ela, é necessário testar exaustivamente a população, sobretudo as camadas menos favorecidas — as notadamente mais prejudicadas nesse contexto. Um estudo do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pesquisa em Engenharia (Coppe/UFRJ) concluiu que motoristas e cobradores de ônibus, por exemplo, têm risco de contágio aumentado em 70% para o coronavírus. Outro, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), evidencia a situação de vulnerabilidade e risco de contágio enfrentada pelas trabalhadoras domésticas no país.

“Se cada pessoa se comportasse como se estivesse contaminada, o controle da pandemia seria muito mais eficaz. Mas, em um cenário de vasta desigualdade social, enorme pobreza e quadros político-econômico catastrófico, as pessoas não podem se comportar dessa forma. O governo teria que garantir essa possibilidade para a população e, infelizmente, não está fazendo”, destaca.

É necessário testar em massa para identificar os indivíduos contaminados — sobretudo assintomáticos — e isolá-los o quanto antes | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ), a partir da proposta de Marcel Salathé e Nicky Case

A pesquisadora lembra que os países que controlaram a epidemia testaram em massa a população e impediram o vírus de se proliferar, a exemplo do caso da Eslovênia, que, após testar toda a população e isolar os casos de contaminados, teve uma queda de 60% nas novas infecções.

Além da questão do controle da pandemia a partir do mapeamento e isolamento dos infectados, Carolina Voloch explica que a testagem em massa é etapa fundamental para a vigilância genômica — uma vez que só é possível saber a que linhagem o vírus pertence depois que ele é sequenciado. Dessa forma, é possível entender como o Sars-CoV-2 está se espalhando, em que lugares o isolamento é mais (ou menos) necessário, as mudanças do vírus ao longo do tempo, assim como estratégias para atualização de vacinas, caso seja necessário.

“Aqui no Brasil, testamos pouco e sequenciamos ainda menos. Certamente existe uma diversidade desconhecida dos vírus circulantes no país. Só teremos a capacidade de começar a arranhar essa superfície conforme a gente for conseguindo testar e sequenciar cada vez mais”, conclui Voloch.

A melhor forma de evitar variantes é manter os cuidados

Não se esqueça de que quando você protege a si mesmo, também protege os que estão ao seu lado. Portanto, fique em casa, mas, se precisar sair, use máscara de forma adequada e mantenha distanciamento físico entre as pessoas. Além disso, lave sempre bem as mãos e dê preferência a áreas com bastante ventilação. E, quando for a sua vez, vacine-se.

Por Igor Soares Ribeiro e Carolina Correia