O massacre na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, Zona Oeste do Rio, chocou a população brasileira e despertou a reflexão sobre o que seria capaz de levar uma pessoa a cometer um crime como esse. Além das constatações de que o atirador Wellington Menezes de Oliveira sofria de perturbações mentais, outros fatores, principalmente sociais, também são apontados como possíveis influências na ação violenta do criminoso.
O episódio em Realengo guarda semelhanças com outras matanças em instituições escolares, ocorridas em países como EUA e China. Mas isso é suficiente para explicar a tragédia? Há algum fator em comum entre os assassinos de países com contextos tão diferentes? A partir do crime bárbaro em Realengo, a convivência familiar e social de crianças e adolescentes passou a ser analisada de maneira mais cuidadosa. Para debater sobre o tema, o Olhar Virtual conversou com o vice-diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, professor Márcio Amaral.
Olhar Virtual: Em seu artigo publicado no site do Instituto de Psiquiatria sobre o que teria levado o atirador a cometer o crime, o senhor faz uma separação entre uma investigação psicológico/familiar e os possíveis determinantes sociais. Por que o senhor acredita que essa divisão seja importante?
Márcio Amaral: Não há separação nas causas desse fato, mas o estudo é facilitado com essa divisão. Esse foi um crime eminentemente social, um fenômeno da sociedade que não pode ser reduzido à doença mental. Dizer isso é de uma pobreza enorme, já que nem mesmo é possível afirmar se havia, como muitos estão dizendo, um caso de esquizofrenia. O que podemos dizer é que o Wellington sofria de um estado paranóide, um hiperrealismo. Para dizer algo além disso só fazendo um diagnóstico, uma análise com a pessoa, o que obviamente é impossível.
Olhar Virtual: O senhor acredita que, como nas cartas deixadas pelo atirador, há citações que remetem a traumas vividos pelo mesmo na infância e na juventude, pode-se dizer que ele “parou no tempo”?
Márcio Amaral: Pelo contrário, esses traumas provocaram o salto de uma fase da vida dele para outra mais distante. Uma ex-colega de escola de Welington disse que ele se vestia como um velho, com a camisa por dentro da calça, meias altas e uma pasta embaixo do braço substituindo a mochila, o que comprova que ele pulou da infância para a vida adulta. Ele queria destruir a adolescência e a primeira que ele exterminou foi a sua própria.
Olhar Virtual: O quanto a vida em família pode influenciar o comportamento de um indivíduo na sociedade?
Márcio Amaral: De uma maneira muito forte. Nós sempre repetimos fora de casa o que vivenciamos em família. Essa preocupação, por exemplo, que o criminoso demonstrou por animais abandonados pode muito bem ser reflexo de um abandono vivido pelo mesmo dentro de casa. O fato de o corpo dele ainda estar lá no IML reforça ainda mais esse pensamento. Esse é um último abandono. É o ato final, e é o último ato da peça que mostra tudo o que já passou.
Olhar Virtual: Há em destaque no seu texto a afirmação de que “em todo ‘reformador da humanidade’ há um perverso, pois ele parte da não aceitação do ser humano como é”, relativa às citações de Wellington nas cartas quanto à pureza sexual. O que causa ou pode causar essa vontade de mudar a sociedade?
Márcio Amaral: Pois é, qualquer discurso que fala mal do povo é perverso. É uma prova do desejo de poder, da vontade de um conservador de resistir ao que é novo. Compare a vivacidade do rosto daquelas meninas assassinadas com a falta de vida do rosto do Welington. Ele tinha uma inveja horrível, era um morto-vivo que virou um homem de ação que queria consertar aquilo, aquela diferença entre ele e essas outras pessoas.
Olhar Virtual: O senhor também afirma que o discurso das pessoas no dia a dia pode contribuir para atitudes perturbadas de quem tem uma doença mental. Como essa influência negativa pode ser evitada?
Márcio Amaral: Ele se aliou ao discurso que fala dos adolescentes como o mal, principalmente quanto à sexualidade, e absorveu essas ideias da maneira dele. Para evitar esse tipo de coisa é preciso ter cuidado com o que se fala e criticar violentamente esse tipo de atitude, de postura radicalmente negativa em relação a certas pessoas. Tais pensamentos refletem a intenção de muitas pessoas de que o mundo e os indivíduos devem ser os mesmos sempre, o que é impossível.
Olhar Virtual: Como pode ser feita a prevenção de atitudes criminosas de indivíduos com problemas mentais?
Márcio Amaral: Esse crime que aconteceu é para fazer a gente pensar. O motivo é um problema da sociedade, por isso precisamos mudá-la de alguma forma. É necesário aprender a incluir todas as pessoas, quem tiver algum problema ou quem for simplesmente diferente. Temos que criar uma sociedade acolhedora que, além de tolerar a diferença, tem que gostar dela. Afinal, eu aprendo muito mais com quem não é igual a mim, não é verdade? Eu faria uma ciranda na escola, ciranda mesmo, com todas as crianças juntas igual àquela música que coloquei no início do meu texto: “Não quero ver ninguém de fora/Abre a roda e vem brincar”.
Olhar Virtual: Quais os determinantes sociais que o senhor acredita que possam ter influenciado o desfecho?
Márcio Amaral: Para mim, o que há de errado na sociedade e que prejudica as pessoas é esse sistema de vencedores e derrotados em que vivemos. Enquanto cada um segue seu papel acontece tudo da forma mais conveniente para os vencedores, mas de vez em quando alguém destinado a ser derrotado se rebela e acontece uma coisa drástica como esse massacre. Em minha opinião, a única vitória que interessa é a que leva outros junto. Além disso, um caso como esse é um do Brasil e não uma influência de casos semelhantes que aconteceram em outros países. O que aconteceu aqui representa que temos problemas daqui que são nossos e que nós temos que resolver.
Olhar Virtual: Como poderá ser feito o trabalho de recuperação do trauma das pessoas que presenciaram ou tinham relação com as vítimas do massacre?
Márcio Amaral: Eu acredito que a solução está na fala do policial militar que atirou no Wellington, que disse que temos que proteger essa escola, até porque ele tem ligação com ela. Existe um provérbio chinês que diz: “se você salvou uma vida, você é responsável por ela para sempre” e acho que é mais ou menos assim que ele deve se sentir. Muitos “superespecialitas” que têm a cabeça viciada em aumentar os riscos para previsões certas podem tratar o acontecimento e suas consequências de forma exgerada, mas o que temos que fazer é injetar vida na escola, sem tratar os que foram diretamente afetados pela tragédia como pobres coitadinhos. Aconteceu algo terrível? Aconteceu. É difícil esquecer? É. Mas nós podemos fazer isso, tentar superar a morte com a vida.