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20 anos da Lei nº 10.639: a obrigatoriedade de ouvirmos outras histórias

Legislação tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira em escolas públicas e privadas da educação básica

Segundo dados de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, 55,9% dos brasileiros se declararam como negros (soma de pretos e pardos) enquanto 42,8% se declararam brancos. Apesar de sermos comprovadamente um país mais negro do que branco, a educação formal – aquela que aprendemos nas escolas – foi, por muito tempo, baseada em uma única perspectiva: a eurocêntrica. Seguindo essa concepção, os estudantes não tinham a oportunidade de aprender as histórias do povo que é a maioria no país, pois o aprendizado era apenas a partir do olhar branco.

Há vinte anos foi aprovada pelo governo federal, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei nº 10.639/2003. Ela determina que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. A Lei ainda reforça em seu texto que “o conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. A norma também estabelece que esses conteúdos devem ser ministrados em todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Passos que vêm de longe

A Lei nº 10.639 foi mais um dos avanços rumo a uma sociedade efetivamente antirracista e teve como influência a ação do movimento negro brasileiro. Ela foi criada em um período em que a igualdade racial e a famosa ideia da democracia racial, tão enraizada em nossa sociedade, foram muito discutidas. Podemos citar alguns passos que levaram até a aprovação da lei, mas sem esgotá-los: em 2003 foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (Seppir). Com status de ministério, foi extinta em 2015 como órgão de assessoramento direto da Presidência da República, passando a uma secretaria especial do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. Também em 2003 foi instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), por meio do Decreto nº 4.886. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), a PNPIR tem como objetivo “a redução das desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na população negra, mediante a realização de ações exequíveis a longo, médio e curto prazos, com reconhecimento das demandas mais imediatas, bem como das áreas de atuação prioritária”.

Engana-se quem acredita que datam dos anos 2000 as iniciativas do movimento negro brasileiro para que a história da África fosse introduzida nos currículos das escolas. Em 1984 entidades do movimento negro da Bahia elaboraram e assinaram um documento solicitando a inclusão da disciplina Introdução aos Estudos Africanos em escolas de ensino fundamental e médio (antigos 1º e 2º graus) da Secretaria de Educação do Estado. Em 1985 a Secretaria determinou a inclusão da disciplina por meio da Portaria nº 6.068. 

Todas essas iniciativas, e tantas outras que foram realizadas graças ao poder de articulação do movimento negro, escancaravam à sociedade brasileira que o racismo era uma questão e que ele precisava ser combatido, inclusive no âmbito da educação. As ações que buscam contribuir com uma sociedade antirracista também jogam por terra a ideia de que o Brasil é o país da igualdade racial, em que todas as raças convivem em perfeita harmonia. Essa harmonia não existe e são necessárias ações afirmativas e políticas públicas para oferecer direitos e dignidade às raças que foram historicamente subjugadas. 

Como a realidade de apagamento histórico vem sendo modificada

Para Denise Góes, superintendente de Ações Afirmativas, Diversidade e Acessibilidade da UFRJ, a Lei nº 10.639 é importante porque valoriza o legado africano na sociedade brasileira, além de contribuir para o autoconhecimento da população em geral, não apenas dos negros. Além disso, ela destaca que a lei “propicia a reconstrução da imagem da população negra tão dizimada por conta do período da escravização colonial”. Oferecer aos estudantes da educação básica conhecimento sobre História da África é ter a possibilidade de formar cidadãos conscientes e comprometidos com a busca pela equidade social. Denise destaca que a prática permite oferecer outro olhar sobre o continente africano:

Mapa da África em letreiro vermelho ao lado da imagem de uma árvore baobá
Mapa da África. | Foto: Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

“Em geral [no imaginário das pessoas], a África é um lugar de miséria absoluta, de doenças infecto-contagiosas, onde a gente vive abaixo do IDH possível de imaginar. Esta é a África do sonho de todo mundo, esta é a África idealizada pelo mundo, enquanto a África é cheia de potências na área da Geografia, na área da Astronomia. Quando você traz este novo, você potencializa o aluno a pensar que África é esta que ele nunca soube que existia e que esconderam dele o tempo inteiro”.

Edmilson Ferreira é técnico em assuntos educacionais na UFRJ, doutor em Educação pela Universidade e cursa pós-doutorado em História Comparada no Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC), na mesma instituição. Em sua pesquisa, ele trabalha com a educação infantil – crianças entre quatro e cinco anos de idade. Ele conta que tem observado em seus estudos que as práticas mais comuns para implementação da Lei nº 10.639 são na área de literatura infantil.

“Isso é muito potente, sobretudo sobre as literaturas africana, afro-brasileira e indígena. Eu percebo que as escolas estão resgatando autores e artistas e fazendo o contraponto com as personalidades da atualidade. Muito recentemente eu tenho observado também um debate sobre o racismo estrutural, o racismo recreativo e o racismo religioso. Essas são pautas muito recorrentes e também existe na escola um debate de acolhimento”, declara Ferreira.

A aprovação e implementação da Lei nº 10.639/2003 e tantas outras iniciativas que já foram e estão sendo realizadas mostram o quão urgente e necessário é tratar sobre as questões raciais, que envolvem toda a população brasileira, não apenas os negros. Só assim seremos capazes de diminuir as mazelas do sistema social e econômico que ainda é a base de um país construído a partir de um sistema que hierarquizou pessoas pela cor de suas peles.