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Da Sala de Aula: como o visgo do magistério me prendeu

Em mais um Da Sala de Aula, o professor Delfim conta sobre uma escolha mandatória

Enquanto eu planejava, mentalmente, o texto para este artigo, apareceu a mim, em certa página do Instagram, a pergunta: “Se você pudesse voltar no tempo, ainda escolheria ser professor(a)?” Eu, que não sabia como começar este texto − agora estou em um processo plenamente metalinguístico, e isso é algo bem próprio do professor de Língua Portuguesa (risos) −, já poderia fazer os primeiros rascunhos mais seguros rumo à concretude de um texto com início, meio e fim.

Pode parecer clichê, eu admito; porém, preciso dizer que eu não escolhi a carreira do magistério. De alguma forma, de algum modo, a carreira do magistério me escolheu. Confesso que esse visgo me prendeu desde bem cedo, quando eu ainda era apenas um menininho. Na verdade, antes mesmo de ser alfabetizado e começar a ler e a escrever, eu já antecipava a minha profissão: “Eu serei professor”. 

Talvez, eu tenha sido “escolhido” pelo magistério devido a alguma carga professoral bem forte no meu DNA. Digo isso porque o meu avô, que não possuía formação pedagógica, agia como professor nas décadas de 40 e 50, no interior das Minas Gerais. Segundo relata a minha mãe, ele era dedicado aos livros e à didática, alfabetizou os próprios filhos e os filhos dos vizinhos, e tirava dúvidas de professoras formadas que estavam, oficialmente, habilitadas para o exercício da docência em salas de aula do então Ensino Primário. 

Certamente, ouvir de minha mãe essas histórias e sentir prazer em ser, conforme as palavras dela, “parecido com o vovô” motivaram-me a também querer ensinar. Para mim, não havia bola, carrinho ou pião que conseguissem substituir a alegria de estar com um caderno e uma caneta nas mãos.

Ao passo que eu me aprofundava na educação formal, mais sentia vontade de aprender e estudar. Tal era essa vontade que eu vivia lendo e relendo o já lido;  escrevendo e reescrevendo o já escrito. Essas práticas eram uma realidade mesmo quando eu ia às festas de aniversário. 

Obviamente, não demorou muito para que eu começasse a “ensinar”. Primeiro, surgiram os alunos imaginários; depois, as crianças da rua. Os pedidos que eu fazia ao meu pai geralmente envolviam um quadro-negro, uma caixa com gizes e um apagador, e felizmente ele não hesitava em atendê-los.  Frustrando todas as expectativas, não me matriculei no Curso Normal. No início da década de 90, o preconceito relacionado a um menino fazendo Formação de Professores era muito grande. Apesar de sempre ter mostrado personalidade altiva e decidida, sucumbi ao medo da possibilidade de sofrer chacota dos outros meninos.

Como isso não era o fim, eu fiz, feliz e lucidamente, a Licenciatura em Letras (Português/Literaturas) em razão do amor que sempre tive ao “idioma de Camões”.  Não, não,  ao “idioma de Caetano”. Esse amor aumentava à medida que eu ia passando as fases da Educação Básica e conhecendo o Cancioneiro Brasileiro. Portanto, os anos na Universidade foram tensos; porém, prazerosos.

Como aluno de unidade pública estadual, meu sonho era lecionar Língua Portuguesa/Literaturas na Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro, e cá estou eu. Para mim, é muito gratificante estar habilitado para ensinar aqueles conteúdos que eu devorava nos livros quando na adolescência: advérbios, homônimos, complementos nominais e afins.

Ter uma plateia jovem e atenta é outra recompensa maravilhosa que ser professor me dá, bem como encontrar, atualmente, alunos adultos fazendo Letras em consequência da positiva influência que exerci neles.

A sala de aula é um grande palco cujos atores são alunos e professores. Eu vibro por poder pisar em tal palco onde o ensino-aprendizagem é realizado, onde crianças, adolescentes e adultos são estimulados e sonhos são construídos. 

Cada resposta certa, cada resposta nem tão “certa”, cada bilhetinho ou lembrancinha de um aluno constroem as cenas que se desenvolvem ao longo de um ano letivo. É digno de nota que nesse palco os holofotes estão prontos para deixar em evidência todos os envolvidos, todos os que escrevem o roteiro para o espetáculo existente na relação professor−aluno−professor.

Desse modo, a minha resposta não poderia ser outra a não ser um retumbante “sim” à pergunta que me norteou a escrever este texto. Eu acredito fortemente em que o magistério me escolheria novamente para ele caso pudesse. E eu? Sem dúvida, não tentaria correr do visgo sedutor dele; eu apenas me deixaria levar, uma segunda vez, por essa majestosa vocação que nunca acaba quando um professor se aposenta, pois os efeitos causados por ela continuam ativos, passando de um sujeito a outro em interminável ciclo.

Delfim Morais é brasileiro, nilopolitano, 45 anos, professor de Língua Portuguesa/Literaturas da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, especialista em Educação de Surdos (Libras). É também prosador e poeta, tendo publicado o primeiro livro, Poemas Universitários, pela Editora Frutificando.