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Opinião

Está na hora de dar as mãos para os povos originários

Pesquisador da etnia Terena fala sobre a relação dos estudantes indígenas com a universidade. Para avançar, trabalho em rede é a sugestão

Este artigo tem por objetivo apresentar um breve panorama da importância, no espaço da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dos estudantes que são membros de povos originários e seguem suas tradições. Também tem o propósito de analisar o papel desempenhado pela instituição em retribuição a nossos povos no percurso de diversos cursos de graduação e pós-graduação.

A ocupação desse espaço, que não foi criado para a circulação dos povos originários, significa a existência de um corpo estranho, diferente, transitando em meio a uma multidão que, ao mesmo tempo, está em busca dos mesmos objetivos, naquela que foi apontada, pela sétima vez consecutiva, a melhor Universidade Federal do Brasil – segundo pesquisa feita pelo Center for World University Rankings (CWUR), dos Emirados Árabes. Este é o momento de a instituição olhar para as origens deste território e dar as mãos aos povos originários, contribuindo para que seus direitos sejam respeitados e abandonando os grandes discursos elitizados.

O trabalho em “rede” entre instituição universitária e povos originários é umas das soluções para essa aproximação. Trocar as propostas de adequações por ações conjugadas de ambas as partes envolvidas. Integrar a organização dos estudantes originários às discussões elencadas referentes aos seus interesses. Nesse sentido, optamos por estruturar este texto em tópicos, de modo a desenvolver os temas apresentados em sintonia com os objetivos do artigo: comentar a relação estabelecida entre a UFRJ e os estudantes indígenas; apresentar a trajetória de alguns estudantes indígenas e destacar a importância do apoio institucional para que eles sigam pesquisando; reconhecer os cursos que têm admitido um contingente maior de estudantes indígenas. Por fim, também deixarei aqui uma proposta, ainda embrionária, de um projeto colaborativo para ações de inclusão e de permanência dos alunos, além do foco na eficácia das atuais políticas de ações afirmativas e programas estudantis que contemplem os estudantes indígenas.

A preocupação em trazer aqui aspectos no âmbito das relações entre a UFRJ e os estudantes indígenas, ao lado de tópicos específicos e projeto colaborativo, tem uma justificativa. Diante da nobre missão a que a UFRJ se propõe e das necessidades de ingresso e permanência de estudantes que integram os povos tradicionais brasileiros, é necessário rever o que tem sido feito e que pontos precisam ser aprimorados para que a Universidade cumpra com mais eficácia o seu papel.

Nesse sentido, a fala de estudantes indígenas vem se apresentar como diagnóstico das ações realizadas, das não realizadas e daquelas que ainda estão por se realizar. Essas falas estão sendo reunidas a partir de uma pesquisa de campo que recolhe relatos orais e escritos dos alunos de cursos de graduação, alunos e ex-alunos do Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND/MN/UFRJ) e de outros agentes dessa história. Para isso, usamos os recursos de redes sociais para a comunicação e abordagem dos temas trabalhados e fizemos a revisão bibliográfica de questões relacionadas à temática.

A expectativa é contribuir para que a universidade valorize as múltiplas formas de conhecimento e expressão; se torne, de fato, agente de inclusão dos indígenas, respeitando suas identidades, modo de pensamento e produção de conhecimento. Ainda, ansiamos pela construção de uma sociedade justa e respeitosa da diversidade, livre da discriminação e da opressão.

Povos indígenas reivindicam seus direitos originários e constitucionais | Foto: Agência Brasil

Políticas direcionadas aos povos indígenas, necessidades e direitos das comunidades indígenas

No decorrer dos séculos, as políticas direcionadas aos povos indígenas, inclusive o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, tinham como objetivos a propagação da língua portuguesa e a integração à sociedade nacional, contribuindo para o apagamento das línguas indígenas. Mesmo com inovações do Estado em relação aos povos indígenas, era predominante o pensamento dos colonizadores, aquele de dominar os territórios e o processo de escolarização, algo enraizado na formação do cidadão, de acordo com o dito perfil da nação brasileira, e que reduz os indígenas à submissão tutelar. Mesmo na República, a colonização predominava na história vivenciada dentro da educação escolar indígena ao longo do tempo, sendo uma de suas marcas a obrigatoriedade da ausência da própria língua materna. Como escreveu Maria Aparecida Bergamaschi, sobre a educação escolar indígena:

“Implementar escolas entre os índios é uma das práticas mais antigas de intervenção, comum no período colonial, pois, mesmo reconhecendo as relações de educação inseridas no modo de vida dos grupos indígenas contatados, como expressam os cronistas dos séculos XVI e XVII, ações educativas introduzidas pelas missões religiosas, que incluíam em alguns casos o ensino escolar, produziram marcas de europeização e de cristianização que ainda hoje se mantêm. […] Mesmo considerando as iniciativas do SPI inovadoras e até responsáveis por rupturas na forma da condução das políticas relacionadas aos índios, observa-se também certa continuidade, principalmente no que tange à atuação de missões religiosas − não só católicas − que se mantiveram ligadas às questões do ensino, implementando escolas, através de acordos firmados com a entidade indigenista.”

Com a Constituição Federal de 1988, iniciou-se um marco temporal que instituiu mudanças consideráveis em usufruto dos direitos, como destacou Zaqueu Claudino: “nossas demandas são fundamentadas em direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988 e por nossa condição distinta dos demais súditos da chamada ‘terra Brasilis’”. Em 1991, a educação escolar indígena passou a ser coordenada pelo Ministério da Educação. Tempos depois, passou à jurisdição das Secretarias de Educação municipais e estaduais, mantida a legislação específica e diferenciada em conformidade com os seguintes artigos constitucionais:

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 2o O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”

Amparadas nesses direitos, as comunidades tradicionais viram o crescimento das escolas dentro dos seus territórios, passando a contar com os indígenas que tinham alguma formação em magistério ou pessoas com conhecimento mais elevado para assumir como professor, iniciando uma nova discussão para criação do projeto político pedagógico indígena e seu currículo diferenciado. De maneira muito tímida, a educação escolar indígena vem substituindo a imagem colonizadora que se enraizou dentro da educação escolar. Desde então, as pessoas dessas comunidades experimentam a necessidade de avançar rumo ao horizonte, saindo das comunidades em busca de novos conhecimentos, chegando às universidades, ingressando em diversos cursos de graduação e alcançando a pós-graduação stricto sensu, por meio de cotas e programas de ações afirmativas.

Segundo a Agência Brasil, em 2019, o ingresso de estudantes indígenas em faculdades foi nove vezes maior do que em 2010. Foram 56,7 mil matriculados no ensino superior, número que representa 0,68% do total de 8,3 milhões dos estudantes, em relação aos demais estudantes. Esse percentual é maior que o total de indígenas em relação à população do país (0,43%), de acordo com último Censo do IBGE, realizado em 2010. Podemos atribuir esse aumento à necessidade das comunidades indígenas de seguir se formando, associada à implantação da política de cotas, definida a partir da Lei nº 12.711/12, que direciona a estudantes de escolas públicas 50% das vagas das universidades e instituições federais de ensino técnico de nível médio. Outro fator que justifica o aumento do percentual indicado é o Programa de Auxílio Permanência, para estudantes em situação de vulnerabilidade econômica.

Universidade deve incluir estudantes indígenas e valorizar saberes tradicionais. Na imagem, curso de extensão do Setor de Linguística do Museu Nacional | Foto: Raphael Pizzino (Coordcom/UFRJ)

A identidade e o papel da UFRJ

A Universidade tem como missão institucional formar cidadãos críticos altamente qualificados, continuando a impulsionar a sociedade na direção de um futuro que garanta justiça e inclusão social e tecnológica. Partindo desse princípio institucional, os povos originários transitam a passos largos, em busca desse futuro garantidor de seus direitos conquistados, da inclusão dentro de qualquer espaço na sociedade, com seus saberes étnicos culturais.

A Universidade precisa direcionar seus discursos para uma prática de funcionamento que alcance as periferias e os territórios tradicionais, por meio da execução de projetos de extensão, pois é lá que estão localizadas as verdadeiras pessoas que se encaixam no perfil para a inclusão social.

No contexto acadêmico e cultural em que estamos, este é o momento para uma reflexão fundamentada em valores, direitos e em uma política coerente e verdadeiramente democrática. A partir do momento em que uma instituição universitária atribui a si a missão de “formar cidadãos críticos, altamente qualificados, além de continuar impulsionando a sociedade na direção de um futuro promissor, garantindo justiça e inclusão social”, ela também assume um compromisso com os povos originários, que, de diversas formas, ao longo desses 100 anos de história recentemente comemorados, contribuíram e contribuem com oferta de dados linguísticos e culturais para pesquisas científicas, dentre outras riquezas. Conforme o relato de Daniel Puri:

“Aí, nesse sentido, pela minha experiência, e pela dos parentes das graduações que eu conheci, a universidade não só não apoia, a universidade não tem um nada pra trazer, pra fazer, onde estamos presentes. Nesse espaço, como ela também não aproveita, não valoriza, não aproveita o indígena que entra pelos seus próprios esforços. Não valoriza seus saberes, a troca de saberes, não tenta entender ou produzir de alguma forma outro diálogo com essas presenças, então apenas reconhecer que estamos presentes. Então a universidade se torna uma luta a mais, que a gente tem que ter dentro desse espaço, dentro desse ambiente, que muitas das vezes a gente já vem para a universidade com uma luta. Já trazendo uma luta de nossos povos, já tendo um projeto. […] Dessa forma, acho que a universidade não respeita a nossa presença, não respeita nossos saberes. Não se propõe a fazer um ensino que respeita nossos saberes, que possibilite troca de diálogo, coloca sempre de forma inferior. Eu cheguei a trocar de curso. O que eu vi, o movimento indígena do meu povo e de outro clã, eu me integrei também. A gente tem uma tendência autodidática, porque a gente tem o ensino voltado a uma luta, uma questão específica, e nada disso é reconhecido. Às vezes que existe um processo que até adoece muitos de nós. Alguns acabam largando a graduação por não ter uma bolsa, não ter uma condição de permanecer. Outros, por confrontos com alguns professores, que, por diversas vezes, falam muitas coisas racistas a respeito de nós, indígenas.”

As pessoas responsáveis por setores importantes da instituição têm que se mobilizar, apresentando projetos inovadores e propostas aos estudantes indígenas, abrindo, assim, uma roda de conversa para tratar de assuntos de políticas estudantis indígenas. Com isso, a Universidade passaria a construir plenamente o seu perfil, assumindo a sua responsabilidade democrática.

A partir do momento que um determinado grupo se organiza e se manifesta em busca da concretização de seus direitos, seja por meio de discursos, seja por meio de práticas, de lutas e de conquistas, esse grupo conquista uma identidade nova. Se antes eram conhecidos como desorganizados, ganham outros nomes e caracterizações. Parafraseando Alberto Melucci, essas realizações projetam em seus participantes sentimentos de pertencimento ao grupo social. Aqueles anteriormente excluídos passam a se sentir incluídos em alguma etapa da ação de um grupo ativo. Manifestações precisam ser organizadas a partir da necessidade de um determinado grupo.

Nesse sentido, a Universidade ainda não nos acolheu como pertencentes. Conforme o relato de Maicom Terena:

“Eu penso que a UFRJ tem que contribuir muito mais ainda do que contribui. Ela tem uma estrutura enorme. Tem que rever programas de financiamentos estudantis. Para nós, indígenas, será de grande valia. Alguma coisa de apoio, alguma coisa que deveria estar ali […] Ali não tem só Terena, tem Xavante, Xokleng, Tikuna, Guajajara, Guarani […] É o povo indígena, acadêmico indígena, mestrando […] Pelo nome da instituição, eu achei que ia ter uma bolsa, um auxílio […] Vai que tem que comprar um livro, contribuir com as nossas necessidades […] Temos o direito de recorrer a essas ações afirmativas e outras. A instituição tem que abraçar a causa […] Temos que nos organizar para conseguirmos uma bolsa da instituição para o ano que vem.”

Havendo interesse, é nessa direção que as coisas caminham para melhorar.

Estudantes do Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND/MN/UFRJ) em sala de aula, antes da pandemia da COVID-19 | Foto: Acervo do autor

Ações afirmativas e programas estudantis: ferramentas de inclusão

A expressão “inclusão” nasceu nos Estados Unidos, talvez pelo fato de o país estar no pioneirismo desse assunto, já nos anos 1960, quando reivindicavam questões democráticas internas, direitos civis etc. Havia lutas pela igualdade de oportunidades, indiscriminadamente. No Brasil, foi a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo que trouxe visibilidade às políticas de ações afirmativas. O evento foi promovido pela ONU, em 2001, na cidade de Durban, na África do Sul, e se traduziu em uma luta contra a discriminação racial, a xenofobia e formas correlatas de intolerância.

Como referência no Brasil, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 2003, inicia a adoção de um sistema de ações afirmativas. A Universidade de Brasília (UnB) adotou o sistema de cotas em 2004, mas foi a partir de 2007, com o programa de expansão e investimento nas universidades e institutos federais, chamado Reuni, que se iniciou a ampliação do debate sobre as cotas raciais por meio dos conselhos universitários. Após ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal, a proposta de implementação de cotas para estudantes negros, pardos e indígenas de escolas públicas foi votada por unanimidade, sendo sancionada, em 2012, a Lei 12.711/12, que regulamenta o sistema de cotas em universidades e institutos federais de ensino. Tem-se a impressão de que é nesse ambiente pensante chamado universidade que as manifestações pelo avanço precisam começar.

De acordo com Antônio Carlos Souza Lima e Maria Barroso Hoffmann:

“As políticas de ação afirmativa […] Precisam adequar-se mais amplamente às especificidades da situação indígena, criando mecanismos de acesso à universidade, que não reproduzam simplesmente as alternativas pensadas para o contexto das populações afrodescendentes, levando em consideração a necessidade de instituir políticas voltadas para povos, isto é, capazes de beneficiar, mais do que indivíduos (ainda que por meio deles), coletividades que pretendem manter-se culturalmente diferenciadas.”

Falar em cotas na universidade é agregar uma política reformulada com mecanismos para o acesso das ações afirmativas e programas de financiamentos estudantis de acordo com a realidade dos estudantes tradicionais. Esse ato significa permanência, reformulação das ações para os estudantes indígenas; significa que a universidade está assumindo sua responsabilidade.

O estado de Mato Grosso do Sul (MS), dominado pelo agronegócio, é o estado mais anti-indígena do Brasil, no entanto, é considerado o 1º estado do país em estudantes indígenas nas universidades. Destes, 99% são cotistas e 70% participam das ações afirmativas e dos programas de financiamento estudantis. De acordo com Antônio Brand e Eva Maria Luiz Ferreira:

“No caso de Mato Grosso do Sul, as demandas indígenas apresentam especial complexidade, decorrentes do forte sentimento ‘anti-indígena’, que, também, perpassa as IES [Instituições de Ensino Superior], atualizado pelos constantes conflitos em torno da posse dos territórios indígenas, e assumido, abertamente, pelos grandes latifundiários, ligados ao agronegócio e veiculado, cotidianamente, pelos meios de comunicação. São, certamente, ainda muitas as dificuldades em entender e dialogar com o universo cultural indígena e, assim, compreender seus esforços de inserção num ambiente percebido por eles, em muitos momentos, como hostil e discriminador.”

Mesmo nesse cenário negativo, o número de estudantes nas universidades no MS faz parte dos reflexos, das organizações dos estudantes indígenas dentro das instituições universitárias: Universidade da Grande Dourados (UFGD), Universidade Federal de Mato Gross do Sul (UFMS), Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). O que aconteceu por lá? Os estudantes indígenas passaram a trabalhar em rede. Mais de 1,6 mil estudantes passaram a ocupar – ou ainda ocupam – espaços nas quatro instituições, alavancando discussões sobre as políticas estudantis. A união dessas quatro universidades em rede coloca os estudantes indígenas em posição de fala fortalecida. O coletivo nos representa.

No Rio de Janeiro, segundo informações fornecidas pela Comissão de Avaliação e Ação Afirmativa do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ), de 2013 a 2020 foram matriculados no Programa 13 alunos de mestrado e 13 em doutoramento, totalizando 26 alunos matriculados num período de sete anos. Atualmente, dentre os 26, permaneceram ativos no PPGAS quatro mestrandos e 11 doutorandos, ou seja, 15 alunos no total. Como o Programa vincula a entrada de indígenas ao número de vagas totais ofertadas, a cada ano, 10% das vagas são destinadas a indígenas. De 2013 a 2020, o PPGAS recebeu um ou dois alunos indígenas por ano, tanto no mestrado quanto no doutorado.

Do percentual de alunos que ingressam por cotas, boa parte acaba comprometida pela insuficiência de programas de amparo à permanência desses estudantes. É preciso despertar para o fato de que a entrada é apenas um dos grandes obstáculos. O programa de cotas precisa vir acompanhado de outras ações afirmativas que promovam a permanência.

No caso dos indígenas, é preciso haver ações que amparem uma participação maior dos estudantes membros de povos originários. Eles, em sua maioria, vivem em ambientes muito diferentes da sociedade externa, por isso o atendimento precisa ser feito em parceria com estudantes veteranos. O ingresso já é uma grande conquista, por isso é tão importante a manutenção dos alunos nos cursos ofertados em nível de graduação e pós-graduação (lato e stricto sensu), apoio primordial para a sua formação.

Vale destacar o relato de um egresso da primeira turma do Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas, curso de existência relativamente recente, o qual já teve 33 dissertações defendidas. Dessas dissertações, 23 eram de alunos indígenas, membros de diferentes etnias. Terena da comunidade Cachoerinha, Município de Miranda, MS, o professor Aronaldo Julio, mestre e atualmente doutorando na UFRJ, descreve sua experiência:

“Em 2016, tornou-se possível refletir sobre como as políticas de ações afirmativas podem promover acesso à formação de muitos professores indígenas do nosso país, onde, por muitas vezes, faltavam oportunidades de assegurar sua qualificação profissional, ingressando em pós-graduação, apontando para a ampliação do número de mestrandos e doutorandos que, ao se inserirem no mercado de trabalho, ou mesmo nas universidades, contribuem para a efetiva transformação social. Espera-se, ainda, que melhore e não acabe essa oferta de programa de pós- graduação para os povos indígenas, para que estejam também habilitados para contribuir com a sociedade indígena na área de pesquisa. […] Em parte, o que percebemos muito, e sobre as questões burocráticas do curso em relação ao financiamento da oferta de cursos, que, na maioria das vezes, a coordenação precisava muito dar seu jeito para o curso não parar e não prejudicar os alunos. Eu entendo que isso tem que mudar para atender melhor os cursistas indígenas, que por muitas vezes saem da sua aldeia sem apoio financeiro e, portanto, dependem muito do recurso que o programa oferece, sobretudo para hospedagem e alimentação.”

Evidencia-se outro obstáculo: a burocracia, dificultando ainda mais o apoio das ações afirmativas e programas voltados aos estudantes. As exigências burocráticas acabam sobrecarregando a coordenação do curso, que “tem que dar o seu jeito” para atender a tudo sem prejudicar os alunos e o andamento das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Esse descaso de muitos que negligenciam a realidade de demandas não atendidas também continuou a ser vivenciado por estudantes nos anos seguintes, conforme o relato de um outro ex-aluno. O professor mestre Mendison Agostinho, da etnia Tikuna, relata:

3“Quero aqui dar um pouco do meu depoimento, sobre a ajuda e a dificuldade que tivemos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nós, todos os alunos, tivemos ajuda pela Universidade na parte do transporte da nossa ida do interior do Amazonas até o Rio de Janeiro. Tivemos ajuda da emenda parlamentar da Deputada Margarida Salomão, que serviu para o refeitório, o aluguel da casa onde ficamos hospedados […] Porém estivemos também em uma situação muito complicada na parte financeira, onde todos sofremos. Passamos dificuldade, mas [com] glória a Deus e à união de todos os colegas e a professora, conseguimos alcançar nossos objetivos. Bom, Parente, a nossa saída daqui da comunidade, né? Como são vários… Vou começar pelo Damião, que veio diretamente de Amaturá [AM], ele teve que pegar um barco, né, para chegar até o município de Benjamim [Constant], que leva uns dois dias, e de Benjamim ele pega uma baleeira [embarcação] que vai diretamente para Tabatinga para pegar o voo, no aeroporto Internacional de Tabatinga, com destino a Manaus e de Manaus ao Rio de Janeiro. Eu, particularmente, eu pegava a minha moto, pedia para irem me deixar até o Porto de Benjamim, onde pegava a baleeira com destino a Tabatinga, mais 40 minutos de baleeira até Tabatinga, daí pegava o moto-táxi até o Aeroporto Internacional de Tabatinga para pegar o voo com destino a Manaus, de Manaus ao Rio de Janeiro.”

A dificuldade de recursos financeiros regulares para a manutenção do mestrado profissional tem sobrecarregado a coordenação do curso, que funciona basicamente sozinha em uma instituição reconhecida nacional e internacionalmente, pela sétima vez consecutiva entre as melhores. É fala recorrente dos alunos as dificuldades por que passam, sendo auxiliados pela coordenação, que utiliza recursos próprios para suprir algumas necessidades corpo discente. Muitos desses estudantes que integram o curso são provenientes das regiões mais remotas do Brasil. Esse é um curso visto pelos alunos e especialistas na área como muito significativo e de alto nível, contudo falta uma política institucional para estudantes indígenas à altura da UFRJ e de seu centenário que propicie estruturas de acolhimento e bolsas de estudo ao seu alunado indígena.

O autor deste artigo, mirando o futuro | Foto: acervo pessoal

Sérgio da Silva Reginaldo é membro da etnia Terena e atualmente cursa mestrado em Linguística e Línguas Indígenas no Museu Nacional (MN). Tem especialização em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela Universidade Novoeste de Mato Grosso do Sul e em Língua e Cultura Terena [Aruák] pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). É graduado em Letras também pela UEMS, com habilitação em Português-Espanhol e suas Literaturas.

Textos mencionados

BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Educação escolar indígena no século XX: da escola para os índios à escola específica e diferenciada. In. STEPHANOU, Maria e BASTOS, Maria Helena Câmara (org.) Histórias e memórias da educação no Brasil, vol III. Petrópolis: Vozes, 2005.

BRAND, Antonio; FERREIRA, Eva Maria Luiz. Acadêmicos indígenas e sua participação em projetos de iniciação científica e de extensão – a experiência do projeto rede de saberes, na UCDB. 5° Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, 2011. Porto Alegre. As fronteiras da exclusão, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo no 186/2008. – Brasília : Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. 496 p.

CLAUDINO, Zaqueu Key. A formação da pessoa nos pressupostos da tradição. Educação Indígena Kanhgág. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013.

GOHN, MARIA DA GLÓRIA. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação v. 16 n. 47 maio-ago. 2011.

MELUCCI, Alberto. Challengingcodes. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

SOUZA LIMA, Antônio Carlos de; HOFFMANN, Maria Barroso. Universidade e povos indígenas no Brasil: desafios para uma educação superior universal e diferenciada de qualidade com o reconhecimento dos conhecimentos indígenas. In: SOUZA LIMA, Antônio Carlos de; HOFFMANN, Maria Barroso (orgs.) Seminário Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil. Políticas públicas de ação afirmativa e direitos culturais diferenciados. Agosto, 2004. Rio de Janeiro: Trilhas de conhecimento, LACED / Museu Nacional, 2007.