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Saúde

O que vem depois da segunda dose?

Com o avanço da imunização no país, o especial Vacinas investiga os próximos passos, como a dose de reforço e a vacinação heteróloga

Cerca de oito meses depois da aplicação da primeira dose dos imunizantes contra a COVID-19 no Brasil, a cobertura vacinal segue a passos lentos. Dados do Ministério da Saúde indicam que cerca de 70% da população recebeu a primeira dose, enquanto apenas 40% dela está com o ciclo vacinal completo, seja com a segunda dose, seja com dose única. Ao mesmo tempo, a quantidade de casos e óbitos diários, apesar da tendência de queda, ainda segue em um alto patamar e evoca questões sobre as próximas etapas da campanha de vacinação.

Imunizados na etapa inicial, os idosos são uma das grandes preocupações dos especialistas. Muitas vezes com comorbidades associadas, como diabetes e hipertensão, esse grupo tem a imunidade mais frágil devido a um processo natural do corpo humano: a imunossenescência. Esse conceito define o envelhecimento do sistema imunológico associado ao progressivo declínio da função imune – assim o indivíduo fica mais suscetível a enfermidades diversas, como infecções, câncer e doenças autoimunes, além da própria redução da resposta vacinal.

“A imunossenescência é um fenômeno complexo, mas podemos definir como uma condição multifatorial que leva a uma deficiência geral da resposta imune, principalmente a adaptativa. Algumas células do sistema imunológico tendem a diminuir com a idade, como as células fagocitárias e dendríticas. Com isso, diminui também a ação citotóxica, ou seja, a capacidade de algumas células de defesa destruírem corpos invasores”, simplifica Guilherme Werneck, professor do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (Iesc).

Pacientes com a imunidade comprometida  por doenças ou por tratamentos que afetem o sistema imune também vivem uma situação similar. Com dificuldade de produzir anticorpos e fortalecer as defesas do organismo, o processo vacinal para esse grupo também tende a ter uma efetividade menor.

A imunossenescência é um processo natural: com o tempo, o sistema imunológico envelhece e isso pode se refletir na resposta imune | Ilustração: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

Em casos como esses, os especialistas e o Ministério da Saúde passaram a indicar a dose de reforço para os idosos com mais de 70 anos que completaram o esquema vacinal há mais de seis meses e imunossuprimidos que já tenham tomado a segunda dose há, pelo menos, 28 dias. Recentemente, o Ministério da Saúde também recomendou a terceira dose para profissionais de saúde, que têm maior exposição ao vírus.

“A ideia da dose complementar é bem sustentada, principalmente para idosos com mais de 80 anos – eventualmente também com 70 anos – e imunossuprimidos. A questão é: qual vacina dar? Também é importante priorizar os que tomaram há mais tempo a segunda dose, pois já estão com a proteção menor”, explica Werneck.

O professor ressalta que mais pesquisas precisam ser feitas para compreender qual é o imunizante mais indicado para uma terceira dose: a mesma vacina aplicada inicialmente ou, ainda, uma vacinação cruzada. O Ministério da Saúde indica, preferencialmente, a Pfizer como plataforma de escolha para vacinar todo o grupo, mas, na falta do imunizante, também considera a AstraZeneca ou a Janssen.

No caso da CoronaVac, imunizante utilizado sobretudo na faixa etária dos idosos, um estudo liderado pelo pesquisador Julio Croda, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aponta que a vacina se traduz em clara proteção contra a doença sintomática da COVID-19, admissões hospitalares e mortes em adultos maiores de 70 anos, num contexto de ampla transmissão da variante Gama. A efetividade do imunizante, no entanto, diminuiu consideravelmente entre a população de idosos, sobretudo com mais de 80 anos.  Então surgiu essa ideia da terceira dose.

“O que se sabe no momento, ou pelo menos o que as evidências sugerem, é que a resposta imune da CoronaVac, que é um imunizante de vírus inativado, tem menor durabilidade, particularmente nos idosos, o que se reflete em uma efetividade vacinal mais baixa nesse grupo etário. Ainda não há muitos dados sólidos sobre esse fenômeno em outras vacinas ou para períodos mais longos de acompanhamento. É preciso um estudo mais a longo prazo”, destaca Werneck.

Segundo o epidemiologista da UFRJ, seria interessante, nesse caso da CoronaVac, usar qualquer plataforma que não a de vírus inativado, seja a de RNA mensageiro (mRNA) – a exemplo da Pfizer e Moderna –, seja a de vetor viral – como a Janssen e AstraZeneca. Nesse sentido, espera-se que isso seja comprovado com estudos mais claros e que gerem dados mais seguros.

Heterologia pode ser uma tática no esquema vacinal?

A vacinação heteróloga, termo que identifica o cruzamento de vacinas, também vem sendo cogitada e, em alguns casos, já é utilizada no ciclo de imunização. Como as vacinas usam diferentes sistemas, a maneira como elas agem no corpo pode ter características distintas. Por isso, realizar o cruzamento de imunizantes pode contribuir de maneira mais robusta para estimular o sistema de defesa do organismo. É importante destacar que a intercambialidade entre vacinas não é nenhuma novidade e já acontece no país, a exemplo dos imunizantes contra a poliomielite.

No caso da COVID-19, pesquisas já realizadas e publicadas mostraram que a aplicação da AstraZeneca, que usa a tecnologia de vetor viral, seguida da aplicação da Pfizer, que usa a tecnologia de RNA mensageiro, pode ser bastante positiva e gerar uma robusta resposta imune, e já vem sendo utilizada no Brasil e na Inglaterra. Outros cruzamentos, porém, ainda estão sendo estudados e precisam de mais evidências para a aplicação. Na primeira parte do especial Vacinas, explicamos as diferenças entre as tecnologias utilizadas.

“Acho que é preciso ficar claro também que essas são questões muito novas para a gente de alguma maneira, já que não temos tantos exemplos de doenças com vacinas de plataformas diferentes. Então, em relação a esses desafios que se apresentam para a gente, muitas dessas respostas nós ainda não temos”, pontua Werneck.

A estratégia de combinação de vacinas pode oferecer, em alguns casos, resposta imune mais robusta | Ilustração: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

Segundo o docente, a vacinação heteróloga pode, também, ser utilizada em caso de efeitos adversos de determinada vacina. Com a AstraZeneca, por exemplo, as pesquisas de cruzamento avançaram após indícios de que a vacina poderia causar casos raros de trombose em uma parcela muito pequena dos vacinados e efeitos adversos em gestantes. Nesses casos, os estudos apontaram para uma boa performance na combinação com vacinas de mRNA. A partir daí, o Ministério da Saúde passou a orientar que grávidas e puérperas vacinadas com AstraZeneca tomem segunda dose da Pfizerou da CoronaVac, de vírus inativado.

“A ideia de uma vacina heteróloga ou reforço heterólogo é interessante para dar conta de melhorar a resposta imune, de torná-la mais duradoura, de resolver problemas operacionais como esses que surgem com a suspensão de lotes vacinais ou a não recomendação de vacinas para determinadas faixas etárias em função de efeitos adversos. Além disso, também no contexto mundial, numa situação de escassez de imunizantes, a vacinação heteróloga pode dar mais flexibilidade ao programa”, conclui Werneck.

Vacinas são apenas uma das formas de prevenção

É importante lembrar que a vacinação não elimina a possibilidade de contágio – mas apenas reduz o risco de internações e mortes. Assim, manter outros cuidados básicos ainda é essencial para controlar a pandemia. Mesmo vacinado, use máscara de qualidade e da maneira correta, continue com a higienização das mãos, opte por atividades em locais abertos e ventilados e mantenha uma distância segura de outras pessoas.

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