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Como se faz uma vacina?

Primeira matéria da série Vacinas aborda a corrida mundial para a produção de imunizantes e como foi o desenvolvimento dos fármacos

ATUALIZADO EM 23/2, ÀS 18H05

A pandemia da COVID-19 ainda é uma realidade. Mas a boa notícia é que, com a aprovação de vacinas e o aumento de sua distribuição pelo mundo, a sociedade avança na luta contra o novo coronavírus. Graças ao esforço dos pesquisadores e a todo o conhecimento científico acumulado, foi possível desenvolver, em menos de um ano a partir do primeiro caso da doença, uma série de vacinas – prenúncio de uma melhora no combate à pandemia e de um grande salto para a Ciência.

O processo de desenvolvimento de uma vacina não é algo simples e – até 2019, bastante demorado. Segundo Guilherme Werneck, professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc/UFRJ), a pesquisa e a produção de um novo imunizante envolvem uma série de etapas que necessitam de grande investimento financeiro em pessoal especializado e em tecnologia.

Em geral, inicia-se a prospecção para uma vacina a partir da descoberta e caracterização do agente infeccioso causador da doença – no caso, o Sars-CoV-2.  Os cientistas analisam a estrutura do vírus, a forma como ele interage com as células, como se reproduz etc., de forma a identificar alvos que possam ser atacados por uma vacina. A partir do momento em que se identifica esse alvo e se desenvolve um primeiro protótipo, passa-se então para a etapa pré-clínica. Nela, são realizadas as testagens in vitro – ou seja, no laboratório – e in vivo – em animais. Assim, são testados a segurança e o potencial em gerar defesas ou imunidade contra o vírus em questão.

Uma vez aprovada na etapa pré-clínica, a vacina passa a ser testada em pessoas. Essa etapa é divida em quatro fases. A primeira busca demonstrar a segurança do imunizante para que a pesquisa possa seguir sem intercorrências graves vacinando menos de 100 voluntários saudáveis. Na fase 2, o grupo que recebe a vacina é expandido para que os dados sobre segurança possam ser aprofundados e a eficácia comece a ser mais bem compreendida, tendo como ênfase os estudos da imunogenecidade – ou seja, a capacidade da vacina de provocar uma resposta imune que proteja contra a infecção.

“São estudos que ainda são realizados com uma quantidade relativamente pequena de voluntários, como algumas centenas. Após a fase 2, se a vacina realmente demonstrar segurança e imunogenecidade, então se parte para a fase 3, a principal do teste de eficácia da vacina”, descreve Werneck.

Nessa fase, a pesquisa é expandida para milhares de pessoas, separadas em um grupo que recebe a vacina e outro que recebe um placebo (o que chamamos de duplo cego). Essa divisão permite a avaliação de até que ponto receber a vacina é de fato eficaz para proteger contra infecção ou formas graves da doença. Geralmente essa fase é realizada em pessoas que tenham uma grande exposição ao agente infeccioso, como profissionais da saúde e outros trabalhadores essenciais. No caso da COVID-19, as vacinas do Instituto Butantã/Sinovac, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)/Oxford/AstraZeneca, da Pfizer/BioNTech e da Jansen-Cilag/Johnson&Johnson foram testadas no Brasil durante 2020 e no início de 2021.

Após a fase 3, ainda há a necessidade de acompanhar a performance do imunizante e os possíveis efeitos colaterais após sua comercialização e aplicação nos países. A fase 4 se dá com a vacina já aprovada. Atualmente no Brasil, o uso emergencial só foi autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para as doses produzidas no Butantã e na Fiocruz. Em 23/2, a agência autorizou o registro definitivo para a vacina produzida pela Pfizer.

“Essa fase é muito importante, pois a vacina será distribuída para milhões de pessoas, e, eventualmente, alguns aspectos que não puderam ser observados nos estudos anteriores poderão ser identificados. É o que a gente chama de vigilância pós-distribuição da vacina na população”, ressalta Werneck.

Gráfico que retrata as etapas da fase clínica de testes da vacina. Há uma multidão de pessoas, e círculos concêntricos determinam a abrangência de cada fase. Na fase 1 há um grupo de poucas pessoas. Na fase 2, esse grupo aumenta. A fase 3, por sua vez, apresenta um grupo ainda maior. Por fim, na fase 4, a abrangência é total.
Etapas de testes da fase clínica. Fase 1: segurança da vacina – efeitos colaterais; fase 2: segurança da vacina – imunogenecidade; fase 3: fase principal do teste de eficácia – duplo cego; fase 4: vigilância pós-distribuição da vacina para a população. | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

Desenvolvimento em tempo recorde: uma grande vitória

Para Werneck, o rápido desenvolvimento das vacinas é uma grande vitória da comunidade científica mundial. “Demonstra que o desenvolvimento científico e tecnológico acumulado ao longo dos anos foi suficiente para que os pesquisadores fossem capazes de mapear o vírus e identificar o alvo de vacinas rapidamente e fazer com que essa vacina passasse por suas diferentes fases de testagem com segurança.”

A pergunta que se faz não é por que as vacinas foram desenvolvidas tão rapidamente – estamos em meio a uma emergência pública de saúde mundial que já causou mais de 2 milhões de mortes em todo o mundo, sendo mais de 235 mil apenas no Brasil –, mas como isso foi possível. 

O docente relembra que os estudos de outros coronavírus já acontecem há bastante tempo, a exemplo da epidemia de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2003, e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), dez anos depois. Esses eventos, no início, permitiram que uma série de pesquisadores de diferentes partes do mundo pudesse se debruçar sobre o novo coronavírus e já ter uma base para pensar o desenvolvimento dos imunizantes.

“Quando aparece um novo coronavírus e se vê a necessidade do desenvolvimento de vacinas, não se está partindo do zero. Existem vários estudos anteriores já realizados que serviram de base para que os pesquisadores hoje pudessem partir de uma etapa um pouco mais adiantada”, conta.

Os tipos de vacina: diferentes plataformas para o mesmo fim

Há, no geral, três principais plataformas de vacinas sendo utilizadas contra a COVID-19: vírus inativado, vetor viral e RNA mensageiro. Segundo Werneck, a vacina de vírus inativado – a base da Coronavac – já é uma plataforma de desenvolvimento bastante conhecida, aplicada em imunizantes amplamente difundidos no país, como contra a raiva e a gripe.

“Basicamente o que se faz é isolar o vírus e, por meio de alguns procedimentos, simplesmente inativá-lo, ou seja, torná-lo incapaz de produzir infecção ou doença no indivíduo. Esse vírus, mesmo inativado, ainda apresenta em sua superfície os antígenos – estruturas que, inseridas no organismo humano, ativam o sistema imune. Este, por sua vez, desenvolve anticorpos específicos contra os antígenos que estão na superfície do vírus inativado.”

Esquema da vacina de vírus inativado. A: coronavírus; B: o coronavírus é inativado, incapaz de causar doença, mas, ainda assim, permite que o organismo produza anticorpos para combater a infecção. | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

Outra plataforma é a de vetor viral, aplicada na vacina produzida pela Fiocruz. Esse imunizante utiliza outro vírus geneticamente modificado que não causa doença em humanos (por exemplo, um vírus que infecta macacos). Munido pelas informações do coronavírus incluído pelos cientistas, esse vírus leva para as células humanas o material necessário para que o corpo seja capaz de produzir o antígeno e os anticorpos para combater a infecção.

“Essa plataforma é utilizada na vacina para o ebola, por exemplo, e é segura assim como as outras. Ela não tem nenhum impacto na codificação genética da célula humana, mas a torna capaz de identificar os antígenos do coronavírus e produzir a resposta imune necessária para proteger da infecção ou de formas graves da doença”, diz o professor.

Esquema da vacina de vetor viral. A: coronavírus, com material genético no seu interior; B: o material genético do coronavírus é utilizado em um vírus geneticamente modificado, permitindo que o organismo produza anticorpos para combater a infecção. | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

Por fim, a outra plataforma que se destaca é a de RNA mensageiro – produzidas pela Moderna e pela Pfizer. Mais inovadores, esses imunizantes apresentam à célula humana um pedaço do RNA modificado do vírus, que é capaz de codificar aqueles antígenos que serão utilizados como fonte para a resposta imune do corpo.

“É uma ideia bastante interessante, pois o RNA é introduzido na célula e fica só em sua parte externa – sequer entra em contato com o núcleo, que é onde está nosso material genético. Esse pedaço de RNA permite a produção de antígenos, que, reconhecidos pelas nossas células, vão produzir os anticorpos e a resposta imune celular para proteger o indivíduo.”

Esquema da vacina de RNA mensageiro. A: coronavírus, com material genético no seu interior; B: apenas uma parte do material genético do coronavírus é apresentada às células – o suficiente para que o organismo produza anticorpos para combater a infecção. | Arte: Ana Montez e Guilherme Vairo (Coordcom/UFRJ)

Werneck afirma que, apesar de diferentes plataformas, o fundamento é o mesmo: fazer com que a célula humana seja capaz de reconhecer características desse vírus como um fator externo – e que, portanto, precisa ser combatido por meio da nossa resposta imune, inicialmente com anticorpos e depois com resposta imune celular.

“Todas elas são bastante seguras e são vacinas que, de forma bastante inteligente, permitem que nós consigamos fazer com que nosso corpo, sem precisar ser infectado, seja capaz de desenvolver defesas contra infecção e doença do novo coronavírus”, conclui.

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