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Memória

“Racismo é um câncer social que dá em pessoas brancas”

Aza Njeri afirma que brancos não estão preocupados em se curar da doença que os atinge

Por Tassia Menezes

Homem branco, loiro, de olhos azuis, detentor dos meios de produção e morador de grandes centros urbanos. Esse é o senso de humanidade proposto pela sociedade ocidental, segundo Aza Njeri, pós-doutoranda em Filosofia Africana no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. Quanto mais distante se está desse padrão, menos humano se é. Por isso, em sua pesquisa, Aza usa a ideia de afroperspectiva para pensar a diáspora africana por meio da arte afrobrasileira e enxerga que a única forma de reumanizar esses corpos negros é a partir de um outro olhar, focado no continente africano.

Na UFRJ desde 2003, Aza fez graduação, mestrado e doutorado na Faculdade de Letras, com pesquisas focadas em Literaturas Africanas. Foi professora substituta da instituição e, atualmente, no pós-doutorado, também dá aulas de filosofia política na Universidade. Em entrevista por telefone à Coordenadoria de Comunicação (Coordcom/UFRJ), ela fala um pouco sobre as questões raciais neste Dia da Consciência Negra, ressaltando a necessidade da população branca se responsabilizar pelo racismo.

 

Como é o processo de desviar o olhar para o sul, como você costuma dizer, em uma universidade tradicionalmente ocidentalizada? Como tem sido o processo para pensar a pessoa negra?

Eu acho que a UFRJ avança. Do momento em que eu entrei em 2003 para agora, eu vejo avanços. E eu falo enquanto uma pessoa que estudou em um curso que não é elitista, mas que é caro pelo material, e em um período pré-cota. Dava para contar nos dedos quantos negros tinha na sala. As discussões eram influenciadas e, por isso, não víamos Carolina Maria de Jesus, por exemplo. E hoje já passa a se ver mais isso, mas não por conta dos professores titulares, mas sim dos professores jovens que entram por meio de processos temporários. Pessoas com a mente mais jovem e que entendem educação universitária a partir de um viés muito mais plural. E não apenas da questão negra, mas a entrada, por exemplo, da pauta indígena.

Essas pautas avançam, tanto na Letras quanto no IFCS, mas ainda sob olhares de desconfiança. Por exemplo, toda a trajetória das literaturas africanas na Letras é uma conquista de professores que realmente lutaram por isso. Já no IFCS, essa discussão ainda está muito aquém da Letras. Ainda se discute se existe filosofia africana. Porque a filosofia hegemonicamente é grega, mas estamos falando de um povo, de um continente, que já produzia filosofia em 2600 a.C.

Então eu vejo a mudança nesses professores novos, que ainda não têm espaço enquanto professores fixos, e também nos estudantes, que formam coletivos, se organizam, e estão propondo o debate. Para além de dizer que faltam professores negros, é também dar mais espaço e respeito a essas pautas, por exemplo, a etnomatemática, que enfrenta dificuldades quando da sua proposta.

 

Nesses últimos anos, essas mudanças têm trazido à tona episódios que questionam a hipótese de democracia racial e têm gerado tensões que antes eram ocultas. Como você enxerga isso? Seria uma ascensão do racismo ou só um desvelamento dele?

Em primeiro lugar, eu acho perigoso. Perigoso sobretudo para os negros, porque significa que de alguma forma somos alvo. Eu acho que a pauta do racismo tem que ser discutida em todas as instâncias e também acho que tem que ter uma boa vontade da parte branca da sociedade e da universidade de se responsabilizar por isso. Às vezes eu tenho a impressão de que estamos falando para nossos pares. A população branca tem que dar todos os meios e caminhos para haver essa discussão, e existem vários caminhos para se fazer isso: a parte artística, a parte científica, intelectual. Mas essa discussão sempre é feita de maneira unilateral. Sendo que o racismo é um câncer social, um câncer que dá em pessoas brancas que não estão preocupadas em se curar. Como é que o próprio doente não tá preocupado com a sua doença e a gente que sofre não tá preocupado em se proteger, em pensar em qualquer outra coisa que dialogue realmente com a nossa sobrevivência? Se o outro não quer discutir, ele não vai discutir.

 

O que esperar e como se preparar como uma pessoa negra para o que vem por aí?

Eu acho que vem muita coisa ruim por aí, principalmente a partir da legitimação do genocídio pelo Estado, tornando-o mais legítimo do que ele já é. Agora a gente tem nas instâncias políticas, presidencial e estadual, pessoas que declaradamente não estão dispostas a nenhum tipo de diálogo. Estou preocupada, mas não histérica. Acho que é o momento de observar e pensar o que podemos efetivamente fazer. Mas isso não significa que a gente vá só esperar, mas vamos tentar estratégias de autoproteção, para buscar novos caminhos de sobrevivência, formas de organização.

Em 2022, a política de cotas vai ser revista pelo governo federal e isso me preocupa, pois os cotistas não vão ter praticamente nada de concreto a apresentar dentro de uma estrutura universitária. A gente vê os coletivos se organizando, mas eu acredito que os alunos cotistas atualmente não estão dando a devida atenção ao que significa essa política governamental de olhar para as cotas em 2022. As cotas são uma vitória e o que se quer é o respeito em relação a isso.

 

Você já passou por algum episódio de racismo na universidade ou na sua vida que tenha te marcado?

Algo declarado como insulto não, dessa forma explícita nunca aconteceu. Mas a gente sente que as pequenas estruturas de poder estão calcadas nisso. Desde um pretenso julgamento do seu professor, por exemplo, sobre a qualidade de seu trabalho. O que é dentro do campo da subjetividade, mas que a gente sente. Tanto já fui desqualificada em situações acadêmicas, quanto já vi isso acontecer. Mas como é que a gente consegue provar que tem uma intenção na postura e no tom de voz? Os racismos que sofri foram sempre muito sofisticados, mas já aconteceu de eu ir dar aula em uma instituição privada e os alunos tomarem um susto porque eu era professora. Eu também não tenho como saber se isso é uma paranoia da minha cabeça ou se realmente, para aqueles alunos, chegar na aula com uma professora negra e com dread, aflorou alguma outra coisa.

Há pouco tempo na Faculdade de Letras teve um caso de racismo, a direção rapidamente contornou a situação, mas a gente vive na era da internet e os alunos são altamente conectados, filmaram a situação, teve toda aquela repercussão, mas até onde eu sei da parte da Faculdade houve uma busca pela solução do problema e isso também demonstra algo positivo.

 

Confira as outras entrevistas da série sobre a Consciência Negra:

A filosofia stricto sensu dos terreiros de candomblé, Muniz Sodré 

“Não deixaremos de ocupar os lugares na sociedade”, Dandara Silva. 

“Mulheres negras são alvo preferencial da violência de gênero”, Érika Fernanda de Carvalho.

“A representatividade deve estar nos três poderes da República”, Martinho da Vila.