Na última segunda-feira, 10 de setembro, o Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania – NIAC/UFRJ, em parceria com o Forum de Ciência e Cultura, realizou o II Fórum de Criminologia Crítica Aplicada, com o objetivo de reunir especialistas das áreas de direito, serviço social, psicologia para abordar a questão da “Criminalização da Pobreza”.
A mesa de abertura foi coordenada pelo professor do Instituto de Psicologia e membro do NIAC, Pedro Paulo Bicalho, e proferida pela professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense e Fundadora/Diretora do grupo Tortura Nunca Mais, que apresentou algumas pesquisas na área social e fomentou a reflexão sobre o atual tratamento dado às populações carentes.
— Provocativamente, Pedro Paulo nomeou a palestra com o título de um filme do grupo Tortura Nunca Mais: “Memória para uso diário”, dentro do tema “Criminalização da Pobreza”, porque é de fundamental importância que a memória seja utilizada no nosso cotidiano para resistirmos ao que acontece atualmente. É nosso papel ter consciência de que aquilo que ficou para trás não é passado — disse Cecília Coimbra ao lembrar o terrorismo de Estado da ditadura militar, que para ela continua acontecendo.
A professora conta que o grupo Tortura Nunca Mais visa fazer a ligação entre as práticas antigas e as constantes criminalização, desqualificação e inferiorização da camada pobre, usadas como justificativa para a eliminação ou à reorganização da mesma. “A criminalização da pobreza atinge todos os seguimentos sociais que, de modo geral, estão da norma e dos modelos hegemônicos”, disse Cecília. Segundo a palestrante, formou-se o senso comum de que apelar para os Direitos Humanos é “passar a mão na cabeça de bandidos”: “Temos que pensar por que a população tem repetido massivamente determinadas frases, para que desnaturalizemos algumas questões que se tornaram banais no mundo”, observou a diretora.
Cecília constatou, através de uma pesquisa aprofundada no campo historiográfico, que essa naturalização está diretamente relacionada ao nosso passado e à formação social que tivemos: “Aqueles que foram rotulados de subversivos nos anos 1970 consideravam a política reacionária violenta, porque era imposta contra indivíduos de classe média. Porém, hoje em dia, ninguém considera absurda a invasão de uma favela e agressão ostensiva aos moradores. Na época da ditadura, os ditos subversivos eram marcados e evitados pela sociedade. Atualmente continuamos a mudar de calçada quando vemos algumas figuras”, lamentou a professora.
De acordo com Cecília, está nas mãos de quem discorda dessa política afetar as pessoas e dizer que rotular o indivíduo pobre como criminoso em potencial não é natural. A diretora ressaltou que o encontro entre pobreza e violência se deu continuamente ao longo da história brasileira: “Os projetos de reordenação urbana e higienização da população, que prometiam modernização e progresso para a cidade, serviam mais para controlar a camada pobre do que para melhorar a estética do Rio de Janeiro. Foi assim que as favelas foram geradas e território de pobreza virou sinônimo de território de violência”, comentou a palestrante. Para Cecília, os médicos higienistas foram grandes responsáveis pela disseminação do ideal eugênico (o mesmo do nazismo), já no início do século XX. Eles diziam baseados no “estudo científico”, que a miscigenação de raças produzia indivíduos degenerados.
Outra pesquisa de Cecília, ironicamente intitulada PIVETES – Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social, busca repensar as práticas que foram sendo produzidas por profissionais do primeiro juizado de menores, nos anos 1920, para determinação da família pobre como incapaz de educar seus filhos: “Até hoje são os médicos e especialistas que dizem os que as pessoas devem ou não fazer. Isso está intrínseco em nós e nem percebemos”, falou. De acordo com a professora, não é por acaso que, no final do século XIX no Brasil, vai se produzindo a rua como lugar do perigo, da doença e da barbárie, enquanto se reafirmava a segurança do lar burguês: “Essa dicotomia tem muito a ver com a sociedade de controle do Foucault, em prender as pessoas em casa para adestrá-las à maneira do Estado”, observou a diretora.
— O que é considerado ser humano hoje? Já tive exemplos de pessoas que achavam que os moradores de rua estavam nessa condição porque gostavam, ou seja, como se ele não fosse tão humano como nós. A desumanização de alguns segmentos se combina com a insegurança, a apatia e o medo implantados desde o final dos anos 1980. Isso faz com que hoje saiamos de branco pedindo mais policiamento ostensivo nas ruas achando que segurança é militarizar — lamentou Cecília Coimbra.