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UFRJ discute integração acadêmica internacional

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agencia2207T.jpgO Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ realizou, nos dias 19 e 20 de setembro, a II Conferência Brasil, América Latina e União Européia ampliada, aprofundando o debate iniciado em setembro do ano passado. O evento ocorreu na Casa do Estudante Universitário, e discutiu temas como a constituição européia, intercâmbio acadêmico, integração regional e perspectivas culturais.

Constituição Européia

Quando os franceses – seguidos pelos holandeses – rejeitaram em plebiscito o texto que estabeleceria uma Constituição para os 25 membros da União Européia, a mídia apontou o resultado como sendo um duro retrocesso na tentativa de integração do continente. No entanto, jornalista francês Bernard Cassen, editor do prestigioso Le Monde Diplomatique, a recusa não constitui um fracasso do projeto europeu, pelo contrário, pois trouxe a possibilidade de discuti-lo com a sociedade.

De acordo com Cassen, os líderes europeus discutiram um mercado, não uma sociedade, e o livre-comércio apregoado por este projeto somente beneficia os mais fortes. “Aprovar a Constituição, seria institucionalizar políticas conjunturais, no caso neoliberais”, enfatizou o jornalista.

Cassen desmistificou o estereótipo segundo o qual a França recusou o texto (elaborado por seu ex-presidente Valéry Giscard d’Estaing) por xenofobia. No que qualificou de um “civismo sem precedentes”, houve reuniões por toda França, nas quais pessoas que não se conheciam chegavam com os tratados em punho (a despeito de sua ambigüidade e obscuridade), pontos importantes sublinhados e os discutiam. “Os franceses recusaram-no sabendo seu conteúdo”. A Espanha conseguiu ratificar a Constituição via plebiscito, mas 80% dos espanhóis não leram o texto (dados da própria UE).

Os dois principais partidos políticos (Socialista e UMP), bem como os veículos da grande imprensa, empreenderam grandes esforços em propaganda a favor da aprovação da Constituição, sem obterem sucesso. Segundo o professor Geraldo Nunes, organizador da conferência, isto desvela uma igual recusa ao sistema partidário tradicional e às políticas tradicionais de emprego.
Mesmo com a ducha fria no processo de ratificação constitucional, as instituições européias continuam a funcionar normalmente. Isto é o que faz Cassen enxergar a conjuntura com otimismo, pois a “Europa é um processo em construção, e nós a queremos como uma ampliação da solidariedade e não apenas do mercado”.

Integração regional

A temática da integração dos países latino-americanos entre si e com a Europa foi abordada no evento pela jornalista uruguaia Beatriz Bissio, pelos brasileiros Milton Temer, jornalista, Emir Sader, sociólogo. Os três foram unânimes em destacar que a integração advém do intercâmbio entre os parceiros, não apenas comercial mas sobretudo no que tange à cultura, no reconhecimento do outro, na aceitação de suas diferenças. A integração entre os países latino-americanos seria facilitada pelo patrimônio histórico-cultural comum aos povos da região.

Sader ressaltou que as relações entre América Latina (AL) e União Européia (UE) têm sido pautadas por políticas liberalizantes de comércio. “É preciso redefinir o marco economicista que norteia nossas relações”.

Como exemplo de justiça nas relações comerciais, Sader destacou a relação atual entre Cuba e Venezuela. “A Venezuela não se vale do petróleo para impor condições e recebe como contrapartida a medicina social cubana, a melhor do mundo. Isso não tem preço no mercado. Isso é trocar solidariedade por solidariedade. Não é se limitar ao valor mercadológico de cada produto”, exemplifica o sociólogo. Temer concorda com a visão do colega e acrescenta que o presidente Lula deveria ter feito o mesmo que Chávez, “usar sua base social para fazer mudanças estruturais”, mas em vez disso realizou concessões que contradizem o programa de seu partido, o PT, em prol de uma “cretinice chamada governabilidade”, montando um leque de alianças, que mais parece “formação de quadrilha”. Isto na visão de Temer faz com que o país tenha crescimento pífio comparado à Argentina, que passou por grave crise econômica em 2001.

A jornalista Beatriz Bissio, por sua vez, destacou que na América Latina, a mídia exclui parcelas significativas de sua população do que é chamado de notícia. “Seja o Cadernos do Terceiro Mundo (revista da qual Bissio é editora) ou outra publicação, a temática dos países periféricos precisa recobrar seu espaço”, defende a jornalista, antes de acrescentar que a América Latina precisa “nutrir-se de si mesma para pensar o seu futuro”.

Intercâmbio acadêmico

A vice-presidente da Université Paris XII, Patrícia Pol, abordou em sua intervenção as novas diretrizes para o ensino superior na União Européia, conhecidas como Acordos de Bolonha, ou simplesmente pelo nome desta cidade italiana.

Bolonha é um processo, oriundo de discussões que já duram mais de uma década, que tem a ambição de tornar a Europa a maior “economia do conhecimento”, tendo por horizonte o ano de 2010. Seus objetivos são aumentar a qualidade de ensino e a mobilidade de alunos e professores, permitindo também a comparação e validação de currículos.

O intercâmbio entre instituições européias e mesmo de fora da comunidade é uma das prioridades, não obstante a Europa seja o continente de maior mobilidade acadêmica. Existem 2 milhões de estudantes em mobilidade no mundo, a Europa recebe 45% deles (Reino Unido, França e Alemanha à frente) e exporta 25% (inclusive de um país da comunidade para outro). Já a América Latina recebe 1% e exporta 3% de seus universitários (principalmente para os Estados Unidos).

Segundo Pol, para que o processo seja bem-sucedido são necessárias a vontade política dos governos e a atuação conjunta com estabelecimentos, “respeitando as especificidades de países e instituições, harmonizando sem contudo homogeneizar”.

O Mercosul, por sua vez, não demonstra priorizar a educação da mesma forma que seus colegas europeus, é o que acredita o professor Nélson Maculan, ex-reitor da UFRJ, e atualmente na Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Em sua opinião, o bloco sul-americano não tem projetos de cultura, de ensino. “Nós nem mesmo temos um sistema para validar e reconhecer diplomas argentinos”, enfatiza o professor.

Em suas palavras, este descaso é a conseqüência da lógica neoliberal, que não reconhece a educação como um bem público. “Somente em 2005 nós recuperamos o valor orçamentário (em valor corrigido) que a educação teve em 1995”, exemplifica Maculan.

Apesar das críticas, o Mercosul já esboça medidas que qualifiquem o ensino superior para a competição internacional. De acordo com Ramiro Laterga, consultor da SESu, o bloco possui dois programas para fomentar o intercâmbio acadêmico entre os países-membros (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) e associados (Bolívia e Chile): o MEXA – Mecanismo Experimental de Credenciamento- responsável, no momento, pela avaliação dos cursos de agronomia, engenharia e medicina. As instituições credenciadas passam ao MARCA – programa Mobilidade Acadêmica Regional, cujo objetivo é promover o intercâmbio entre as universidades aprovadas. Ambos os projetos são financiados com recursos federais.

No âmbito da integração com a União Européia existe o ALCUE, um espaço de ensino superior entre latino-americanos, caribenhos e europeus. O Comitê de Seguimento da ALCUE é formado por Espanha e França (coordenadoras da UE), Brasil e México (coordenam a AL) e São Cristóvão e Nevis (responsável pelo Caribe). O ALCUE estabeleceu o ano de 2005 como horizonte para a criação de mecanismos de credenciamento e validação curricular eficazes, estímulo à mobilidade de estudantes e professores, a criação de centros de estudos, da AL sobre a UE e vice-versa.

Perspectivas culturais

No segundo dia da Conferência Internacional, os aspectos socioculturais dos países envolvidos ditaram o rumo das discussões entre os debatedores, intrigados pelo desafio de enriquecer as propostas de diálogo e intercâmbio acadêmico pretendidas pelo encontro.

Um dos organizadores do evento, o professor Geraldo Nunes, da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis, em entrevista ao Olhar Virtual, explicou a importância da abertura das universidades nacionais a possibilidades de interação com instituições de ensino superior estrangeiras: “Nosso produto é o conhecimento, que só se produz através da interação com outras culturas. Sem essa troca, nunca conseguiremos sair da estagnação”.

Segundo o professor, a América Latina e a União Européia são os principais focos potenciais de intercâmbio acadêmico no país atualmente. “Desde 2004, a União Européia incorporou mais dez países que possuem configurações muito semelhantes às que encontramos nos países da América Latina, com uma única diferença: apesar de apresentarem um padrão de vida equivalente ao nosso, eles têm uma média de 12 anos de escolaridade. Portanto, a idéia é aprender com eles e aprofundar cada vez mais a integração com nossos países vizinhos”, afirmou.

Coordenada pela professora Heloisa Buarque de Holanda, do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ (PACC/UFRJ), a mesa redonda iniciada às 15 horas contou com a participação dos professores Eduardo Portella (Faculdade de Letras da UFRJ), Beatriz Resende (PACC) e Renato Cordeiro Gomes (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), além do jornalista Eric Nepomuceno e do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, secretário geral do Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil.

Abordando questões como o conceito de nação e a mundialização da arte, Renato Gomes iniciou o debate. “Observamos atualmente uma nova significação de mundo, com uma deslocalização intensa do saber, resultante da globalização e das novas tecnologias de comunicação, alterando profundamente nossa configuração espacial”, disse o professor, mostrando aos participantes o papel da literatura nesse processo. “A nova concepção de mundo não é mais derivada do Estado Nação. A individualidade da narrativa singular (de cada pessoa) se sobrepôs ao nacionalismo”, declarou.

Dando continuidade à temática cultural, Beatriz Resende estabeleceu um panorama da literatura latino-americana desde o fim do século XX até os dias atuais. Segundo a professora, a retomada da rotina democrática no continente foi essencial para a formulação de novos fluxos culturais. “A geração de novos autores conquistou seu próprio espaço. As relações políticas, culturais e existenciais fizeram surgir novas subjetividades e propostas de narrativas. A pluralidade e a fertilidade das identidades múltiplas da América Latina finalmente encontraram espaço para se expressar”, disse Beatriz, que enfatizou o agravamento da questão urbana e o questionamento à “moralidade” como temas recorrentes na literatura contemporânea. Segundo ela, políticas que facilitassem a livre circulação de livros seriam um grande estímulo ao intercâmbio acadêmico e cultural.

Eric Nepomuceno, utilizando sua experiência pessoal como jornalista e escritor, chamou a atenção para as diferenças existentes entre os conceitos de latinidade e brasilidade. “Uma das diferenças entre o Brasil e o resto da América Latina é que nosso país se exclui da realidade dos outros países do continente. Temos desprezo por nossa própria imagem latina, não nos inserimos em um contexto comum, o que resulta em um grande desprezo pelos países vizinhos. No entanto, quando a primeira universidade do Brasil foi inaugurada, em 1920, a dita América Latina já possuía universidade”, disse Eric. Afirmando possuir uma perspectiva de visão de mundo latino-americana, ele abordou também a questão da queda de fronteiras: “Sou plenamente a favor, desde que eu tenha a minha voz. A globalização não pode pasteurizar a minha voz. Devemos poder olhar no espelho e ver nossa face, e não a face de quem tem a pretensão de nos dominar”.

Concordando com o jornalista, o professor Eduardo Portella, membro da Academia Brasileira de Letras, enfatizou a necessidade de se refazer o diálogo entre os países latino-americanos, mas também enfatizou a falta de representação que o Brasil e a América Latina possuem em órgãos de importância geopolítica global, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e outros. “Para contornar esse abismo entre nós e os países hegemônicos, deve haver uma política de negociação. Toda cultura é ou deve ser intercultural, ou seja, promover o reconhecimento do outro”, afirmou.

Ao final do debate, o secretário geral do MRE Samuel Guimarães Neto abordou a possibilidade de intercâmbio com a União Européia, lembrando as questões políticas que têm circundado o bloco recentemente, como a questão da aprovação de uma Constituição comum e as eleições alemãs. “Na verdade, não sabemos qual será o futuro da União Européia. Portanto, devemos sempre ampliar nosso leque de possibilidades, e definir como será nossa relação com o bloco e com cada um dos países constituintes, individualmente. Além disso, é de extrema importância a negociação de acordos entre o MERCOSUL e a União Européia, das mais diferentes naturezas”, disse o embaixador.