O maior ativo no ecossistema do ensino superior público é o capital humano. Docentes, técnicos-administrativos e estudantes das centenas de universidades públicas são os atores que escrevem a história da ciência no Brasil. Mas o que fazer quando a ciência não é considerada estratégica para o desenvolvimento do país? E quando falamos em América Latina?
Para se ter uma ideia, segundo dados do Serviço de Cidadania e Imigração dos Estados Unidos, a partir de compilação de consultorias do setor, a fuga de cérebros do Brasil ficou mais intensa em 2019 e 2020, quando a busca pelos vistos permanentes EB1 e EB2 subiu 40% na comparação com 2017 e 2018. Já se compararmos com 2015 e 2016, quando o país estava em recessão, o salto é ainda maior: 135%.
Para discutir caminhos para o desafio, o THE Latin American Universities Summit 2021 ─ evento que foi organizado pela consultoria britânica Times Higher Education (THE), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), reunindo líderes de universidades latino-americanas ─ convidou a reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, para participar de um painel temático sobre a retenção de talentos na América Latina. Além de Denise, participaram do debate Carlos Gilberto Carlotti Júnior, pró-reitor de Pós-Graduação da USP, e Cláudia Costin, fundadora e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (Ceipe/FGV). A mediação do encontro foi feita por Dalmo Mandelli, assessor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Os debatedores refletiram o que pode ser feito para melhorar as condições de trabalho e de bem-estar dos trabalhadores da ciência. Afinal, como motivar a próxima geração de talentos acadêmicos? Discutiram, ainda, quais reformas são possíveis para melhorar o acesso e a equidade, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento profissional, e que medidas os governos podem tomar para apoiar pesquisadores e universidades.
Para a reitora da UFRJ, mais do que a carreira em si, é quase impossível reter um talento sem financiamento para pesquisa e desenvolvimento.
“Além da queda no financiamento, a burocracia no Brasil é considerável, e nós também temos os problemas relacionados à importação. Teremos que ser criativos e estabelecer mais plataformas de pesquisa em vez de laboratórios de pesquisa individuais. Temos que estabelecer cada vez mais redes de pesquisa. Essa é uma grande mudança em nossa cultura científica”, afirmou Denise.
A reitora denunciou a situação orçamentária das universidades federais. “Nosso maior problema está relacionado à diminuição progressiva do financiamento para ciência, tecnologia e educação nos últimos seis anos. Infelizmente, a tendência se mantém e o orçamento é ainda menor em 2021”, apontou.
“Podemos concluir que será muito difícil proteger a próxima geração de talentos acadêmicos porque alguns atrativos importantes não existem mais em nosso país. A restrição de financiamento é uma realidade. Não temos acesso rápido a reagentes de pesquisa, por exemplo, e não temos uma carreira competitiva. Enfim, nosso desafio no Brasil e na América Latina, como um todo, é realmente muito grande para tentar reter nossos talentos nessas condições inóspitas”, continuou Denise.
Claudia Costin lembrou que a pandemia gerada pelo novo coronavírus esticou a desigualdade na educação. “Há uma urgência em melhorar a qualidade dos ensinos fundamental e médio, especialmente após a pandemia de COVID-19, e equilibrar as taxas de aprendizagem. É preciso equidade. Não podemos construir ilhas de excelência e precisamos garantir uma fuga reversa de cérebros, trazendo de volta talentos latino-americanos”, afirmou.
“A universidade deve ter um impacto nacional e local em conexão com o desenvolvimento sustentável e inclusivo, tornando as instituições de ensino superior mais conectadas e relevantes para o país”, disse Costin. Ela teme um processo de extinção em massa de postos de trabalho, motivado pelo que podemos chamar de robotização. A dirigente da FGV citou uma pesquisa da Universidade de Oxford, que estimou a perda de dois bilhões de empregos nas próximas duas décadas, movimento que deve acelerar a desigualdade. Por outro lado, outras ocupações vão surgir, exigindo outras habilidades até então não ou pouco exploradas. Para isso, todo o modelo educacional precisa ser repensado.
“Como nos preparamos para o futuro e como vamos reter talentos? Primeiro precisamos ensinar a pensar nas aulas, estimular os alunos iniciantes em seus cursos na universidade para participar de pesquisas. Dentro de cada universidade, precisamos criar uma cultura de colaboração e, claro, um mecanismo de financiamento sólido para a pesquisa deve ser colocado em vigor”, pontuou Costin.
Para Carlos Gilberto Carlotti Júnior, é importante destacar que o sistema de pós-graduação no Brasil é relativamente recente. O número de vagas também vem crescendo, em contraposição aos investimentos. Segundo ele, uma pesquisa recente mostrou que, na última década, 5% dos ex-alunos brasileiros de pós-graduação estão trabalhando no exterior. “Três situações são importantes para manter as pessoas em seus países: condições sociais (trabalho, por exemplo), segurança e desenvolvimento sustentável. Nas circunstâncias atuais, não podemos considerar que estamos em boa posição nesses três itens”, afirmou o pró-reitor de Pós-Graduação da USP.
“As ações precisam começar no ensino fundamental e médio. Se isso não for feito, nossos talentos se perderão e falharemos no desenvolvimento social. A universidade brasileira tem um sistema de cotas sociais e raciais que já mudou o perfil de seus alunos universitários, mas é o primeiro passo. Precisamos de mudanças importantes, como o apoio a pesquisas e à universidade. É preciso que haja o abandono do discurso do negacionismo e um orçamento válido para a ciência e tecnologia”, finalizou.