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Memória

A filosofia stricto sensu dos terreiros de candomblé

Muniz Sodré afirma que os nagôs fundaram uma filosofia genuinamente brasileira e analisa ativismo negro e racismo no Brasil

Por Jean Souza

Em seu livro Pensar Nagô, Muniz Sodré, professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ, afirma que é possível traçar “modulações”, paralelos entre uma “filosofia afro” e a tradição consolidada pela filosofia grega no Ocidente. Para o docente, o povo nagô fundou uma filosofia propriamente brasileira, manifesta na liturgia dos terreiros de candomblé. Em entrevista ao Portal UFRJ, ele comenta as diferentes formas de manifestação dos conhecimentos ocidental e oriental.

Segundo o professor, uma “intelectualidade negra” se formou recentemente com as políticas de ação afirmativa e um novo tipo de pensamento se forma nas universidades. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista, concedida especialmente para o Dia da Consciência Negra.

 

Um de seus livros mais recentes, Pensar Nagô, aborda as características de uma filosofia afro, que dialoga com aspectos da filosofia ocidental. O que caracteriza o pensamento nagô e como ele se insere num processo de descolonização do pensamento ocidental?

Em primeiro lugar, essa é uma maneira de mostrar que há outras possibilidades de pensar, além daquela que foi protagonizada pela Europa, a partir da leitura que fizeram da Grécia. Hoje já se admite, por exemplo, que o budismo, o taoísmo são formas de filosofia, mas não se fala da África. Quando se fala da filosofia africana é dentro da filosofia ensinada nas escolas da África pelo discurso de colonização da Europa. O que eu mostro nesse livro é um evento particular, a liturgia nagô na Bahia. Nagô foi a última grande etnia de origem urbana da África que veio para a Bahia e fundou grandes comunidades litúrgicas, que se chamam terreiros de candomblé. Liturgia não é só o protocolo ao redor de presidente da República ou ao redor da seita cristã. Nesse caso, é uma forma de poder que une ao mesmo tempo forças sociais e invisíveis, que são as das entidades em que se acredita. Eu trato o terreiro como a comunidade litúrgica de descendentes de escravos que exerce naquele espaço, e com irradiação para a sociedade global, uma outra forma de ver o mundo, outra forma de poder, que é o poder litúrgico. Na verdade, é uma filosofia stricto sensu. E isso não é uma fala de boa vontade que eu estou tendo com o terreiro. A filosofia grega, ocidental, é uma filosofia da voz ativa: cabeça, cérebro e voz falando para um outro. Mas a filosofia oriental (a budista, a taoísta e a africana) é de voz média, atravessa o corpo; portanto, não é só fala. É também música, movimento, dança e atuação concreta no mundo.

Por que a filosofia é importante? É a forma grandiosa, excelsa, que a razão assume no Ocidente. Então, quando você diz que um indiano, um chinês, um negro africano não podem filosofar, no fundo você está dizendo que não podem pensar. Ele não consegue, porque pensar só é visto como a forma que a filosofia ocidental se deu: argumentativa e falada, ou escrita. Eu diria que aqui no Brasil é o primeiro livro [tratando] de uma filosofia autóctone, propriamente nossa. Não desconsidero o peso da filosofia ocidental. A filosofia grega tem partes que são atravessadas por essa mesma coisa que atravessa os nagôs. Estou fazendo um encontro entre formas pensar: o transe está em Nietzsche, o êxtase está em Deleuze, a mística está em Heidegger, está também em Wittgentein. Esses momentos, que às vezes a razão instrumental desconsidera, mostro que são muito importantes para o nagô.

 

A filosofia nagô tende a ter mais reconhecimento no Brasil?

Acho que sim, porque há uma coisa nova no Brasil, que vem da era Lula e que eu acho que não se retorna, que foram as políticas sociais afirmativas. Essas políticas, a de cotas, por exemplo, deram a possibilidade de o negro ter acesso à universidade e ter voz como minoria que tem voz pública. Isso permitiu que se formasse uma pequena intelectualidade negra. Você vai ao Ifcs [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ] e vê esses coletivos lá, de gênero, de negros… é numeroso. Fui falar sobre esse livro lá e não cabia gente no auditório. Tinha brancos, mas a maioria era de negros e negras, gays…Todo mundo ali escutando e percebendo que tem um outro modo de pensar. Fui fazer a mesma coisa vinte dias antes das eleições em Florianópolis, que é uma cidade de voto reacionário, precisava ver o que era a universidade, muita gente, a maioria de negros. Fui à Bahia para um congresso de pesquisa e extensão da Ufba  e vi o público, a maioria era negra. Você não pode deixar de ver que essas políticas de afirmação mudaram e estão mudando o panorama de uma fração enorme de jovens.

 

Sobre o acesso da população negra à universidade: o perfil do estudante mudou com as cotas, hoje o universitário é mais preto e mais pobre, as cotas são também para escolas públicas e têm recorte de renda. O que essa mudança de perfil acarreta para a identidade do negro no país?

Discordo muito de certos ativistas negros que insistem na questão de identidade, acho que é um conceito provisório, afirmativo. Para mim, não existe uma identidade negra, como uma essência. Ela é uma espécie de plataforma por onde você pode reivindicar políticas sociais afirmativas. Eu diria sujeito negro, indivíduo negro. A ideia de minoria para mim não é quantitativa, é qualitativa. A minoria social é um grupo de pessoas que, por determinadas circunstâncias e características, reivindica voz no espaço público. E essas políticas foram megafones, plataformas de voz, de poderem intervir no espaço público. Importante é o grupo de pele escura que é afrodescendente e que mais direta ou remotamente, descende de africanos. Quando falei de uma filosofia africana, falei de uma filosofia afro, porque são modos alternativos de proceder. Portanto, não se trata apenas de cor da pele. Isso coincide com os que estão sendo esmagados pelo racismo, mas essa filosofia pode ser assumida por brancos, também, e pode ser assumida por outros tipos de minorias.

Você pode perguntar a qualquer pessoa que seja de terreiro quem é que efetivamente acolhia gays [antes de políticas afirmativas]. Se não lhe disser que eram os terreiros de culto, está mentindo. Se existe um culto às divindades, aos princípios cósmicos que não é regressivo, discriminatório, é a filosofia nagô. É um culto moderno. Eu diria mais, é o único culto pós-moderno que eu conheço. Digo esse “pós” rindo um pouco porque sabemos que, mil anos antes do cristianismo, o culto aos orixás já existia. O fato de ser antigo não deixa de fazê-lo moderno, está no mesmo compasso de coisas em que se precisou de muita luta para [alcançar] conquistas, respeito às diferenças. Grandes figuras do culto nagô e do pensamento nagô masculinas eram homossexuais respeitados, respeitados mesmo. A melhor definição para dizer o que é moderno foi de Roland Barthes, que foi meu professor. Ele dizia assim: moderno é você saber que não é mais possível fazer isso. Ser racista não é uma atitude moderna. Não é mais possível, mas fazem. Sabem que estão fazendo de forma regressiva, anacrônica. Matar, agredir a moça que é lésbica, o cara que é gay…

 

Vemos no país o que parece ser uma ascensão do racismo, da LGBTfobia, de um conservadorismo que termina na violência. Qual análise você faz do racismo hoje? Ele está ancorado em argumentos que o minimizam, como a ideia de vitimização?

O racismo, para mim, é universal. O Ocidente, com todo o seu brilho, seu intelectualismo, não conseguiu resolver a questão do racismo. Nosso racismo brasileiro tem uma coisa que é própria, que Gregory Bateson chama de duplo vínculo. É uma categoria que se aplica a esquizofrênicos e também a relações sociais. O cara agride a mulher e diz que a ama. Ao mesmo tempo que diz alguma coisa, faz outra. Pois bem, o racismo brasileiro é um racismo de duplo vínculo: a consciência racista repele o outro, mas diz assim: “Eu não sou racista, eu gosto do negro”. É preciso, em cada lugar, você examinar como ele se dá e como se exerce, mas, mesmo tendo características próprias, ele existe universalmente.

 

Parece que o racismo fica mais autorizado em ambientes como as redes sociais, há grupos que desqualificam as denúncias. Algo não mudou nesses últimos tempos na leitura que a sociedade faz do racismo? Não se pretende negá-lo com mais força?

Nega-se o racismo por outra característica brasileira. Essa voz que o negro foi adquirindo paulatinamente mexe com uma coisa muito cara à consciência das pessoas de pele clara no Brasil: a posição de classe. É possivelmente por não poder mais chamar de “meu neguinho que trabalha aqui”… Porque a forma social escravagista não acabou no Brasil. A abolição se deu juridicamente, mas a forma psicossocial de escravidão continuou. É natural na consciência conservadora, seja da classe média, seja do mais pobre, considerar o negro um cidadão de segunda classe, sem mérito antropológico. Isso não mudou porque é uma herança da escravidão. E, para mudar, não se muda por lei, se muda por educação. Pode ser por um tipo especial de educação, por aproximação, pela reinserção dessas diferenças no meio de nossas vidas e por uma educação em que hoje fique clara e demonstrada que a diferença de cor é capaz de coisas grandiosas.

 

Que cenário você considera que se projeta para esse “sujeito negro” no futuro próximo do país?

Faço bons votos, quero que o país vá em frente. Não gostaria de traçar cenários, porque não sou muito otimista com relação às coisas que estão se passando, mas vou lhe dizer o seguinte: quando a voz sai da boca, ninguém a bota mais para dentro. Quando ela chega ao coletivo, que ela se espalha, ela tem outra força, ganha vida própria. Acho que esse movimento de ascensão e de conquista de uma voz por parte do elemento negro não tem mais retorno. Ela pode silenciar um pouco, pode ficar mais cautelosa, mas não tem mais retorno, porque quem transporta a voz, quem faz a palavra circular no pensamento afro é uma entidade muito poderosa chamada Exu. É o orixá da comunicação no culto nagô, é o dono da voz. Isso, para mim, é uma coisa importante. As coisas não vão ser levadas exatamente como eram antes. Se o cenário que se projeta é ruim, é exatamente no ruim que se dá o bom combate, a boa luta.

 

Confira as outras entrevistas da série sobre a Consciência Negra:

“Racismo é um câncer social que dá em pessoas brancas”, Aza Njeri. 

“Não deixaremos de ocupar os lugares na sociedade”, Dandara Silva. 

“Mulheres negras são alvo preferencial da violência de gênero”, Érika Fernanda de Carvalho.

“A representatividade deve estar nos três poderes da República”, Martinho da Vila.