Qual é o valor atribuído ao corpo? Esse valor é o mesmo no Brasil, na França e na Alemanha? O que homens e mulheres pretendem ao buscar a boa forma física? Há 22 anos, estudando o que é ser homem e o que é ser mulher na cultura nacional, a professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ e antropóloga especialista em gêneros, Mirian Goldenberg descobriu que o corpo considerado, culturalmente, belo é um dos bens mais valiosos e cobiçados pelos brasileiros.
“Ao contrário do que ocorre em outros países, aqui, o corpo é visto como um capital que oferece prestígio, sucesso e poder”, diz a antropóloga. Enquanto, na França, por exemplo, o destaque é dado às roupas elegantes, no Brasil, elas assumem a condição de um mero acessório para exaltar o corpo da melhor e maior forma possível. Outro exemplo é a famosa cantada de rua. Em contraste ao que acontece em nosso país, onde essa prática serve, muitas das vezes, para levantar o ego feminino, na Alemanha, o fato de um homem apreciar publicamente o corpo de uma mulher é considerado uma grande ofensa.
“Em nosso corpo está inscrita a nossa cultura”. Citando um de seus antropólogos base, Marcel Mauss, Mirian afirma, ainda, que é possível perceber pelas partes do corpo adoradas em cada gênero a posição que cada um deles ocupa na sociedade. O fato de homens admirarem a parte inferior do corpo feminino e, por sua vez, o tórax masculino chamar mais a atenção das mulheres é um reflexo do que cada um representa para o outro: as mulheres ainda são vistas como inferiores e os homens ainda são o gênero dominante, aquele que oferece proteção.
Uma das formas de modificar esse tipo de pensamento, ainda presente em nossa sociedade, segundo Mirian, é promover atitudes que desmistifiquem a imagem da mulher brasileira como frágil e dependente, não apenas financeiramente, mas emocionalmente falando também, pois o que significa, no Brasil, ser uma mulher independente, mas não ter um marido? Para muitas mulheres, ainda fica faltando algo. O capital corpo, entre outras coisas também, é uma forma de adquirir outro capital bastante cobiçado em nossa cultura: um marido.
“Outras culturas, outros capitais”, explica Mirian. Em países da Europa e nos Estados Unidos, as mulheres não dão tanto valor ao que ela denominou capital marital (casamento como uma realização pessoal de grande prestígio). Segundo pesquisas da antropóloga realizadas em 2007, com mulheres da classe média alemã, acima de 60 anos, a maioria delas chega à idade adulta segura de si, feliz por ser bem sucedida, possuir sua casa própria e pelas viagens realizadas. Muito pouco ou quase nunca as palavras corpo e marido apareciam. O intelecto é o bem mais cobiçado por lá.
No Brasil, em contrapartida, esse é o momento da crise, de acordo com a antropóloga. É depois dos 40 que as mulheres começam a reclamar mais do corpo, da falta de homem, ou da pouca atenção que eles lhe dão, o que Mirian chama de discurso da vitimização. Elas se sentem tão mal, por dar tanto valor ao corpo e à figura do marido, que as que não são bem sucedidas nesses dois quesitos têm a sensação de ser invisíveis.
Essa valorização do corpo é tão alarmante que uma pesquisa realizada em dez países aponta que apenas 1% das mulheres brasileiras está satisfeita com o seu corpo, 63% apresentam desejo de fazer cirurgia plástica (contra 25% nos EUA) e mais de 629 mil cirurgias plásticas são realizadas por ano, no país. E, para quem acha que só as mulheres sofrem com esse apego ao corpo, a professora explica que os homens também são afetados pela obrigação de se apresentarem viris e de propagar o conceito de dominação masculina.
Para uma mulher revolucionária, um corpo revolucionário, tal como fez Leila Diniz, objeto da defesa de doutorado da professora. Leila foi a primeira mulher grávida a exibir o corpo publicamente. Primeiramente, de biquíni, em uma praia sozinha, sem o pai da criança (que não era seu marido), nem o namorado. E, depois, nua, em uma revista. Esse tipo de atitude a qual Mirian chama de revolucionária faz com que a imagem da mulher seja valorizada por outros motivos que não o corpo sexualmente exuberante. Capitais que, de fato, agregam valor.
Essas e outras abordagens foram realizadas durante a palestra “O corpo como capital”, da professora e antropóloga Mirian Goldenberg, na última sexta-feira, no Instituto de Ciências Biomédicas, no Centro de Ciência e Saúde da UFRJ. Autora de mais de 11 livros, entre eles Toda mulher é meio Leila Diniz, A arte de pesquisar, De perto ninguém é normal e o mais recente Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade, ela defende que, para superar os males dessa supervalorização do corpo, é necessário uma revolução corporal.