Um grupo de doutorandos e mestrandos da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ vem abrindo caminho para que estudantes pretos, pardos e de baixa renda cheguem à pós-graduação. Iniciado em 2024, o projeto se originou após um incômodo: o Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas (PPGMC) não registrou, naquele ano, nenhuma aprovação de candidatos cotistas, mesmo com 25% das vagas reservadas para esse grupo. Apenas neste ano, a iniciativa já auxiliou na aprovação de dez alunos na 1ª fase do PPGCOM/UFRJ, de quatro classificados na etapa final da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e em uma aprovação na fase final da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que são alguns dos processos seletivos de pós-graduação mais concorridos do país.
“Foi um choque ver uma turma inteira sem nenhum estudante negro ou pardo. Aquilo mexeu comigo de um jeito profundo”, lembra Luciano Olivieri, idealizador do projeto, na época mestrando do PPGMC. Atualmente, doutorando da ECO, Olivieri explica que, por ter um pai negro, mesmo sendo branco, essa percepção racial faz parte de sua trajetória pessoal.
A partir da análise do processo seletivo, o doutorando identificou que ele é composto por quatro etapas (podendo variar para três, a depender do programa), divididas entre prova teórica, prova escrita de inglês, estrutura de projeto e entrevista com a banca. Além disso, observou que os candidatos cotistas foram eliminados durante o processo seletivo. “Isso aconteceu e ninguém viu, nem mesmo eu, que era representante discente”, explica Olivieri.
A partir desse incômodo, Luciano, a doutoranda Arlete Nery e a professora Inês Maciel — única docente negra do PPGMC — uniram forças. O trio organizou um grupo de estudos gratuito, voltado à preparação de cotistas para processos seletivos de mestrado. As aulas começaram em agosto de 2024, no campus da Praia Vermelha, com 17 participantes. “O encontro entre eu, Luciano e Inês foi de total sintonia. Inês trouxe o apoio institucional e o conhecimento da pós-graduação que precisávamos. Sem ela, tudo seria mais difícil”, salienta Arlete.

Em pouco tempo, o grupo cresceu. Se, no primeiro ciclo, nove alunos prestaram seleção e seis foram aprovados, em 2025 o número de inscritos saltou para mais de 40, abrangendo programas de várias universidades do estado, como PUC-RIO, Uerj, Fiocruz, entre outras. Ao todo, são 14 os programas de pós-graduação pleiteados, entre seis diferentes instituições. O projeto continua sem qualquer financiamento e é sustentado apenas por trabalho voluntário e pelo desejo de partilhar conhecimento:
“Não tem grana rolando em esfera nenhuma. É um grupo movido pela vontade e pelo afeto. A gente chama de grupo de estudos porque preparatório, geralmente, é comercial. O nosso é 100% voluntário”, elucida Olivieri.
A lei que transforma a universidade
A lei de cotas é uma ação afirmativa de políticas públicas. Esse tipo de iniciativa tem como objetivo solucionar questões sociais, como o racismo estrutural e a desigualdade social. Em 2014, a UFRJ passou a usar o sistema de cotas raciais no ingresso de seus alunos à graduação. Durante algum tempo, a Universidade considerava apenas as cotas sociais, que destinavam as vagas a estudantes de baixa renda e vindos de escolas públicas. Para Luciano, os processos seletivos precisam ser repensados com vistas a se tornarem cada vez mais inclusivos:
“A cota é o que há de mais revolucionário na universidade pública. Cota não é ter pena. É um compromisso social. É saber que a educação transforma a vida do pobre. Mas por que nenhum candidato cotista passou? Seria o tipo de seleção? A preparação dos candidatos? Talvez se tivesse entrado um cotista, eu acho que não teria rolado isso, mas como não entrou ninguém, foi algo muito radical, foi doloroso”, ressalta o doutorando.

Universidades e programas de pós-graduação mais diversos
O grupo de estudos é focado na pós-graduação stricto sensu, ou seja, mestrado acadêmico no campo da comunicação social. As aulas cobrem toda a bibliografia exigida pelos programas de Comunicação e incluem oficinas sobre metodologia e escrita de projetos. Além das atividades coletivas, os alunos recebem acompanhamento individual, o que se tornou possível graças à colaboração de 23 doutorandos e professores de diferentes instituições. “Sem essa rede de voluntários, seria impossível manter a qualidade. Inclusão requer esforço, e a gente se esforça de verdade”, explica Luciano.
Arlete, que atua há anos com ações afirmativas e ativismo negro, ressalta o impacto do projeto na vida dos participantes. “Foi muito gratificante ver todas as vagas das ações afirmativas preenchidas, com pessoas muito preparadas para estar nesse lugar.”
A professora Inês Maciel, embora não faça mais parte do grupo, é lembrada com gratidão. “A presença dela foi fundamental para que o projeto ganhasse legitimidade e apoio dentro da ECO”, reconhece Olivieri.
Hoje, com aulas majoritariamente online, o projeto ampliou o alcance e recebe estudantes de outros estados. A contribuição dos alunos se limita a uma vaquinha simbólica de R$ 5 para custear a plataforma. “A gente quer mostrar que esse espaço também é deles. Que o pobre, o preto, o periférico podem e devem estar na pós-graduação”, diz o doutorando.
Mesmo diante dos avanços, os coordenadores apontam que ainda há um longo caminho para que a universidade reflita a diversidade do país. “A reserva de vagas é um começo, mas não basta. É preciso entender que o candidato cotista chega mais tarde à faculdade, enfrenta mais barreiras e precisa de apoio para se manter. Depois que entram, não são mais cotistas. São alunos com a mesma capacidade de qualquer outro”, defende Arlete.
“A universidade pública precisa enxergar sua responsabilidade social. Não basta dizer que é inclusiva. É preciso agir. O que move a gente é o compromisso de empretecer a universidade e mostrar que esse é um lugar que também nos pertence”, complementa Luciano.
Narrativas que se conectam em prol da educação
A iniciativa de criar um projeto online possibilita que pessoas que moram em regiões mais distantes do Rio de Janeiro tenham acesso ao conteúdo abordado, a partir da desmistificação de temas de difícil compreensão e do acolhimento. Oriunda de escola pública e moradora de Itaboraí, a publicitária Adriana Sardinha descreve como a iniciativa mudou a sua vida pessoal e acadêmica:
“Passava por um momento de muita frustração na minha vida profissional. Frustrada por estar afastada da academia, pois sempre quis seguir a carreira acadêmica. Em julho, conheci o projeto. No mesmo momento, recebi muito incentivo do grupo para não desistir do meu sonho. Sonho que muitas vezes desisti e posterguei. O projeto me deu ânimo a partir das leituras, da disponibilização de aulas gravadas. Eles dividiram a carga com a gente, auxiliando quem não conseguia assistir às aulas e nos ajudaram na criação de mapas mentais facilitando o aprendizado, sempre mostrando a importância do apoio e do diálogo. As dúvidas que surgiam eram sanadas em qualquer horário. Esse acolhimento foi de extrema importância para seguir a busca pelo meu sonho. O projeto foi um divisor de águas na construção do meu conhecimento”, ressalta Adriana.
Ao refletir sobre a importância social da iniciativa, a publicitária salienta que o projeto vai além de um grupo de estudos e que o percebe como um passo de extrema importância para viabilizar a participação mais diversa nos programas de pós-graduação — ainda, por diversas vezes, restritos a classes específicas:
“Vejo o projeto como uma base elementar para que as pessoas se sintam mais seguras para acessar esses espaços. Sabemos que o acesso ao ambiente acadêmico é majoritariamente branco e formado por pessoas de classe média alta, que tiveram uma base de formação mais consolidada. Podemos observar isso quando vamos fazer as provas, a maioria delas goza de mais privilégios do que as pessoas que fazem parte do projeto. Participar do grupo trouxe mais segurança na hora da prova, pois tivemos o suporte de pessoas que são ativas na academia e que compreendem a importância da diversidade para a construção acadêmica”, conclui.

* O texto foi escrito por Ana Clara Ferreira sob a supervisão da jornalista Pâmella Cordeiro.
