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Tudo conosco, nada sem nós

No Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, a comunidade universitária fala sobre conquistas e desafios para promover inclusão na UFRJ

Em 21/9, é celebrado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, uma data comemorada desde 1982, mas oficializada apenas 23 anos depois, por meio da Lei nº 11.133/2005. O mês de setembro é marcado por uma série de datas importantes, especialmente para a comunidade surda: o Dia Internacional das Línguas de Sinais (23), o Dia Nacional dos Surdos (26) e o Dia Internacional do Tradutor/Intérprete (30) são alguns exemplos. Essas efemérides remontam a um passado de luta do movimento das pessoas com deficiência e buscam discutir os direitos e as conquistas em relação ao tema.

De acordo com estimativa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base na Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2022, no país há cerca de 18,6 milhões de pessoas com deficiência, considerando a população com idade igual ou superior a dois anos. Na UFRJ, graças a políticas de ações afirmativas, o perfil dos alunos de graduação mudou de forma considerável ao longo da última década.

Para propor uma reflexão, o Conexão UFRJ conversou com três membros da comunidade universitária a fim de conhecer suas trajetórias e pensar caminhos para uma Universidade mais inclusiva – que possa falar sobre deficiência durante todo o ano, e não apenas em datas comemorativas.

Afinal, como podemos garantir a participação das pessoas com deficiência em todas as instâncias da UFRJ?

Que bom que temos um dia nacional de luta. Mas ser uma pessoa com deficiência é lutar todos os dias, sabe? O mais importante é que a gente não esqueça isso o resto do ano. Que possamos discutir as pessoas com deficiência o ano inteiro.

Paulo Arruda, servidor técnico-administrativo da Diretoria de Acessibilidade (Dirac)

O dia de luta da pessoa com deficiência é todo dia

Paulo Arruda é servidor técnico-administrativo da Diretoria de Acessibilidade (Dirac) desde a criação do órgão, em 2018. Ele conta que foi na UFRJ que passou a ter contato com as tecnologias assistivas, das quais nunca tinha ouvido falar até então. O servidor lembra, com entusiasmo, que a instituição lhe apresentou programas como Sistema Dosvox e o leitor de telas NVDA:

“Foi aqui, dentro da UFRJ, que eu realmente aprendi a lidar com a minha deficiência. É como se fosse um divisor de águas na minha história. Foi aqui que eu tive acesso à informação e ao conhecimento. De certa forma, fui acolhido pela UFRJ”, conta.

Paulo destaca que ainda enfrenta várias barreiras na Universidade, como, por exemplo, a falta de piso tátil e a quantidade de calçadas esburacadas próximas aos prédios. Para ele, a única forma de promover inclusão é removendo, ou pelo menos diminuindo, as tantas barreiras que ainda estão muito presentes na nossa sociedade. Quanto a isso, Paulo é categórico: “A acessibilidade atitudinal é o motor de tudo”, diz.

Ele destaca que, para mudar o entendimento da sociedade sobre pessoas com deficiência, é necessária uma mudança de atitude, uma sensibilização constante:

“Se as pessoas estivessem preparadas para interagir com a diversidade, para interagir com as pessoas com deficiência, as coisas seriam muito mais fáceis. Na minha concepção, isto seria a verdadeira inclusão: proporcionar às pessoas com deficiência a oportunidade de desempenhar as suas atividades, sejam acadêmicas, sejam profissionais, sejam pessoais”, explica.

O servidor Paulo Arruda destaca como é trabalhar com acessibilidade | Foto: Moisés Pimentel (SGCOM/UFRJ)

Trabalhar com acessibilidade é um dos orgulhos de Paulo, que se emociona ao relatar experiências gratificantes nesses cinco anos na Dirac. Um caso específico o marcou profundamente: uma estudante com a mesma deficiência que ele buscou a diretoria e encontrou com o servidor novas maneiras de interagir. Assim como a UFRJ lhe apresentou as tecnologias assistivas no início de sua carreira, Paulo fez o mesmo pela aluna. “Coisas simples como leitores de tela e alto contraste, mas que ela não tinha acesso, assim como eu também não tive lá atrás”, comenta.

“Quando a gente recebe um aluno com deficiência visual que não está tendo um material adaptado pelo professor ou que está tendo dificuldade para cursar uma disciplina, isso me afeta, claro. E de uma maneira muito incisiva, até porque poderia ser comigo. Mas também é gratificante poder fazer algo por esse aluno”, completa.

Em sua avaliação, um dos passos para promover maior inclusão dentro da UFRJ é justamente dar o devido reconhecimento a projetos realizados pela instituição. Paulo destaca a importância da Dirac nesse sentido e acredita em um processo colaborativo entre as diversas instâncias da Universidade, em que se possam aprender e construir juntos, a partir de parcerias.

“É muito importante a gente conseguir criar alternativas para incluir os alunos nas disciplinas, para garantir a eles não só o acesso à universidade, mas a permanência e a conclusão de seus cursos”, finaliza.


Meu desejo é que a palavra ‘inclusão’ não fosse mais necessária e utilizada nos dias atuais (…). Estamos vivendo tempos modernos, tecnológicos, porém em uma sociedade muito atrasada.

Leonardo Coelho, professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Goés

Antes da deficiência, somos pessoas

Leonardo Coelho é professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes (IMPG) e está na Universidade há 23 anos. No laboratório, Leonardo estuda os mecanismos genéticos e moleculares envolvidos na emergência e na disseminação do Staphylococcus spp de origem animal e humana. Nos corredores, ele fala também sobre como é ser uma pessoa com deficiência.

O professor destaca que ser uma pessoa com deficiência é, acima de tudo, ser uma pessoa – com os mesmos desejos, anseios, objetivos, direitos e deveres das pessoas sem deficiência, porém com um impedimento parcial ou total para acessar tudo o que a Universidade pode oferecer para a comunidade. Ele indica que é preciso mudar o olhar piedoso, capacitista, que julga e condena a pessoa pelo fato de não se enquadrar no dito “normal”, pois subestima suas capacidades e aptidões em virtude de sua deficiência.

De acordo com Leonardo, as barreiras atitudinais, comunicacionais e estruturais/arquitetônicas ainda persistem, gerando prejuízos imensuráveis e das mais diversas naturezas para pessoas com deficiência. Para vencê-las, o docente lista três coisas simples, mas realizadas de forma verdadeira: vontade, atitude e oportunidade.


“Vontade de olhar para o outro, não pelo outro ser ‘diferente’, mas por ser, acima de tudo, uma pessoa como todas as outras, que merece respeito, que tem direito a uma oportunidade para mostrar e aperfeiçoar suas capacidades, habilidades e aptidões, além do direito de fazer parte e interagir com a sociedade em geral, acadêmica ou não. Vontade de se comunicar com esta pessoa para saber o que pode ser feito para romper, ou pelo menos minimizar, ao máximo, as barreiras impeditivas que atrasam ou dificultam o crescimento e evolução em sua formação profissional. Ninguém melhor do que a própria pessoa com deficiência para dizer o que precisa para realizar suas tarefas e funções e uma boa conversa frente a frente pode proporcionar avanços inimagináveis para ambos.”

Leonardo reconhece a importância de um dia de luta como um movimento para lembrar à sociedade os desafios que as pessoas com deficiência enfrentam diariamente por causa do desrespeito às legislações vigentes. Além disso, a data simboliza toda a trajetória que essas pessoas trilharam por décadas para conquistar direitos humanos básicos e justiça social. Mas também assevera que, da mesma forma como com o termo inclusão, torce para que não precise mais existir um dia nacional para conscientizar a população.

“Espero que cada vez mais pessoas com deficiência assumam as mais altas instâncias de poder, para poderem de fato promover as mudanças necessárias e urgentes. ‘Nada sobre nós, sem nós’, em outras palavras, nada deve ser decidido para as pessoas com deficiência, sem que elas próprias participem ativamente de todo o processo decisório”.

Para o professor Leonardo Coelho, na universidade ainda persistem barreiras atitudinais, comunicacionais e estruturais/arquitetônicas | Foto: Raphael Pizzino (SGCOM/UFRJ)

Como servidor público da Universidade há uma década, Leonardo conhece os desafios e as oportunidades que podem ser exploradas para garantir um ambiente acessível. Para ele, o primeiro passo é garantir uma abordagem multidisciplinar que conheça as diversas tipologias e especificidades, promovendo o acolhimento dos estudantes.

Além disso, é importante a integração e o suporte – humano, tecnológico, dentre outros – para atender as demandas de pessoas com deficiência ou não. Leonardo cita o Fórum Permanente de Acessibilidade e Inclusão (FPAI), criado em 2016, como um dos espaços possíveis para suporte às demandas e suas deliberações.

“É papel da UFRJ promover a equidade para que todos possam explorar suas habilidades e desempenhar suas funções em todas as atividades na universidade, envolvendo desde os técnicos-administrativos, os discentes e os docentes, seja na graduação, pós-graduação ou extensão, os profissionais terceirizados e pessoas de fora da UFRJ”.

Como professor, Leonardo entende também a necessidade de promover disciplinas acessíveis que garantam a permanência e conclusão do curso pelos alunos. E, para isso, defende a busca institucional pelo uso e desenvolvimento de tecnologias assistivas que permitam que todos explorem de maneira equânime todo o seu potencial.

“Isso sem esquecer de uma questão de extrema relevância, que é a abertura de editais de concursos para contratação, temporária ou definitiva, de profissionais especializados na área da acessibilidade, como: intérpretes de Libras, audiodescritores e consultores em audiodescrição, ledores, facilitadores de aprendizagem, dentre outros. Ou seja, uma grande equipe multidisciplinar que consiga atender a todas as pessoas com deficiência em suas questões, para tornar a maior universidade do nosso país um exemplo para as demais universidades”, finaliza.


Quando cheguei na minha primeira aula, tinha algumas pessoas que sabiam Libras. Aí eu fiquei impressionada, né? Fiquei muito feliz com o ambiente porque eu me senti incluída, vi que as pessoas queriam compartilhar. (…) Porque a inclusão é feita por pessoas, né?

Maria Clara Machado, estudante recém-formada da Escola de Belas Artes

Inclusão também é sociedade

Maria Clara Machado é estudante recém-formada da Escola de Belas Artes. Em 20/9, com muita emoção, a aluna foi buscar seu diploma de licenciada em Artes Visuais. E com isso, vieram as memórias. Ela lembra do receio quando começou o curso, há cinco anos:

“Quando eu fiz a prova do Enem e fui aprovada para estudar aqui na UFRJ, eu me senti muito realizada. Mas depois fiquei um pouco nervosa. Como que eu seria capaz de interagir com os estudantes ouvintes da minha sala?”, conta.

Ao entrar na sala de aula, a surpresa de Maria Clara foi identificar que alguns alunos sabiam alguns sinais em Libras. Ela destaca sua felicidade porque ali, naquele instante, pôde notar que os estudantes ouvintes podiam compartilhar muitas coisas com ela. Isso foi essencial para sua permanência no curso. Eventualmente as barreiras apareciam e, às vezes, se avolumavam – a exemplo da falta de intérpretes no início do curso e o início da pandemia, que forçou as aulas remotas –, mas a estudante sempre pôde contar com o apoio e o respeito dos colegas, que tiveram a sensibilidade em entender que a Universidade é para todos, sem distinção.

“Quando eu tive a primeira aula, a maioria dos professores não tinha experiência de ter um aluno surdo dentro da sala. Alguns tinham empatia com a minha condição, e outros, não. Mas era um direito meu estar ali. Assim a gente foi aprendendo e eu fui me incluindo na turma. Eles me acolheram”, relata.

Maria Clara e a intérprete Lidiane, que a acompanhou durante boa parte de sua trajetória na Escola de Belas Artes | Foto: Moisés Pimentel (SGCOM/UFRJ)

Ela destaca que os colegas de curso sempre a buscavam para falar sobre acessibilidade, seja para compartilhar sobre palestras ou apenas para compreender melhor como ser inclusivo. Uma das pessoas mais importantes para a estudante foi Marina Menezes, sua veterana. Ao visitar os antigos corredores da Escola de Belas Artes, ela pôde reencontrar a amiga.

“É uma sorte, né? Estou muito feliz e muito grata, porque ela me deu muito apoio. Hoje, cinco anos depois, é uma felicidade encontrá-la. Ela me incentivou, assim como eu a incentivei a aprender Libras. Isso é inclusão”, vibra Maria Clara.

Maria Clara (à direita) e sua veterana Marina mostram como pequenos gestos podem tornar a Universidade mais inclusiva | Foto: Moisés Pimentel (SGCOM/UFRJ)

Marina se emocionou ao encontrar a amiga e vê-la receber o diploma. A estudante conta que fazer parte da trajetória de Maria Clara também ajudou na sua própria formação.

“A gente tem que tratar todo mundo de igual pra igual, mas respeitando suas diferenças. E a Maria Clara foi uma pessoa incrível de receber, de confiar na gente… Foi muito importante conhecê-la, abrir nosso horizonte”, comemora Marina.

A agora licenciada em Artes Visuais concorda que falta uma maior visibilidade das pautas das pessoas com deficiência e sua inclusão nas questões universitárias no ano todo. Porém, se anima com as diversas ações que estão sendo feitas para suprir essas questões. Ela cita que teve dificuldades em achar cursos de artes em outros locais, mas que na Universidade pôde encontrar um espaço acolhedor e mais inclusivo.

“Eu vejo que a UFRJ está buscando isso e eu me sinto feliz. Dou graças a Deus também porque eu me formei aqui, me formei na UFRJ”, finaliza Maria Clara.

Conheça mais sobre a Diretoria de Acessibilidade e as ações promovidas pela Universidade.

Agradecimentos especiais a Lidiane Santos e Maria de Fátima Vieira, intérpretes de Libras da Diretoria de Acessibilidade (Dirac) que fizeram parte da equipe do Conexão UFRJ para esta matéria.