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De volta às telas

No Dia do Cinema Nacional, o Conexão UFRJ traz um panorama dos últimos anos e do início do reerguimento do setor

Antes de chegar às grandes telas em salas escuras de todo o Brasil, o cinema nacional é uma indústria que movimenta o país tanto culturalmente quanto economicamente. Por trás das câmeras, estão pessoas que precisam da produção cinematográfica para sobreviver, enquanto, do outro lado, a economia e a cultura brasileiras ganham mais uma obra para chamar de sua. De acordo com dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), em 2022 o mercado cinematográfico brasileiro teve renda total de 1,8 bilhão de reais, com aumento de 98,8% na arrecadação em relação ao ano anterior. 

Para Julia Levy, pesquisadora e produtora audiovisual há mais de vinte anos, além da importância econômica, o cinema tem grande relevância cultural como expressão artística. Segundo ela, a produção audiovisual vem trazendo mudanças importantes de contribuição para a linguagem, representação e diversificação social. Personagens e cenários diversos são expressos no cinema como forma de representação da sociedade. “O cinema não é só indústria, é também uma forma de expressão artística e simbólica. Já há alguns anos as produções audiovisuais brasileiras tem nos oferecido novos autores, protagonismos, narrativas e engrandecido o que chamamos de audiovisual brasileiro. Na minha opinião, essa relevância é muito maior do que a mercadológica”, diz Julia, que também tem mestrado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 Ainda segundo a Ancine, 82% a mais de pessoas foram às salas de cinema em 2022, em comparação a 2021. Apesar de representar um aumento significativo em relação aos anos de pandemia da Covid-19, em que os cinemas sofreram grandes impactos, a pesquisadora afirma que o segmento das salas de cinema continua afetado. Além disso, os filmes nacionais ainda não são preferência do público brasileiro. A agência considera o ano de 2019 como referencial na comparação de dados porque foi o último antes da pandemia. De acordo com o órgão, a participação de mercado do cinema nacional foi de 13,55% naquele ano. Enquanto isso, o percentual foi de 4,2% em 2022 e 1,8% em 2021. Ou seja, apesar de ter apresentado crescimento em relação ao ano anterior, em 2022 os filmes estrangeiros continuaram ganhando mais atenção do público no Brasil.

Regularização e fiscalização do cinema

Uma indústria grande, espalhada pelo país e que abrange diversos setores da sociedade necessita de um órgão fiscalizador. No Brasil, quem cumpre esse papel é a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Criado em 2001, o órgão tem como responsabilidade o fomento, a regulação e fiscalização do mercado cinematográfico e audiovisual no Brasil e é vinculado ao Ministério da Cultura. Segundo o Mapa Estratégico Ancine 2020-2023, o objetivo da agência é promover um ambiente regulatório equilibrado e desenvolver o setor audiovisual do país em favor da sociedade. Julia explica que ela e outros pesquisadores da área defendem a ideia de que, além das atribuições que a Ancine já possui, também deveria ter a responsabilidade de preservar a memória do audiovisual brasileiro. Como exemplo, a pesquisadora cita o incêndio da Cinemateca Brasileira ocorrido em 2021, na qual estavam guardados 1 milhão de documentos da antiga Embrafilme, alguns com mais de 100 anos.

“Ela [a Ancine] também precisaria  dar meios para que se preserve. É uma área com diversas especificidades técnicas e também precisa de recursos para existir. Então, não é só o fomento à produção e o papel de regulador, mas também um papel de preservar a nossa memória. Para continuarmos existindo, também precisamos recorrer, estudar, conhecer o que já fizemos. A área da memória é fundamental”, diz Julia. 

Gradual reerguimento após anos de desvalorização 

“Vamos buscar a extinção da Ancine. Não tem nada que o poder público tenha que se meter em fazer filme. Que tenha uma empresa privada, sem problema nenhum. Mas o estado vai deixar de patrocinar isso daí.” Foi o que disse o ex-presidente Jair Bolsonaro durante uma live do Facebook em julho de 2019. Tal fala reflete um pouco do que a indústria cinematográfica no Brasil precisou enfrentar durante aquele mandato, que durou de 2019 a 2022. Além de declarações, algumas mudanças concretas foram estabelecidas com intuito de enfraquecer o setor cultural. Houve, por exemplo, a diminuição do número de representantes do audiovisual e da sociedade civil  do Conselho Superior de Cinema, responsável por formular a política nacional da área, e a transferência do órgão do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, deixando a responsabilidade de indicação de membros nas mãos do ex-ministro Onyx Lorenzoni. 

 Os últimos quatro anos foram marcados, então, por uma paralisação da Ancine, não apenas devido à falta de investimentos no setor cultural, mas também em termos de motivação política. Nas palavras de Julia, “não foi por falta de dinheiro que a Ancine não agiu. Foram outros os motivos que pararam a área, pois o Fundo Setorial do Audiovisual possuía recursos da própria atividade, como regem as leis que o criaram e as destinações de seus recursos”.

Hoje, em 2023, o setor cinematográfico consegue enxergar luz no fim do túnel. Em março deste ano, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, anunciou o investimento de 1 bilhão de reais  no audiovisual brasileiro durante evento de lançamento, no Rio de Janeiro, do novo decreto de fomento à cultura. O incentivo é referente ao conjunto de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) aplicados no mercado audiovisual na forma de investimentos em projetos de filmes e infraestrutura para as empresas do setor. Além disso, a Ancine iniciou a contratação de mais de 250 projetos cinematográficos de todo o Brasil que chegarão às salas de exibição por meio de mais 450 milhões de reais de investimentos públicos. 

Novos incentivos constitucionais 

O ano de 2022 também tem apresentado algumas vitórias para o setor cultural na Câmara dos Deputados, com a aprovação das leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo. Ambas objetivam dar apoio financeiro a artistas e produtores da cultura brasileira. Considerada uma ampliação da Lei Aldir Blanc, que concedia auxílios à cultura durante o período da pandemia, a Lei Aldir Blanc 2 prevê o repasse de 3 bilhões anuais da União destinados aos setores culturais de estados, municípios e Distrito Federal e institui uma política nacional de fomento ao setor cultural. De acordo com o texto da lei, serão 17 grupos contemplados pelo auxílio por meio de editais, chamadas públicas, prêmios, entre outros. Por sua vez, a Lei Paulo Gustavo também garante investimento na área cultural com a destinação de 3,86 bilhões de reais vindos do Fundo Nacional de Cultura (FNC) a estados e municípios. 

A legislação foi apresentada com o intuito de fomentar atividades e produtos culturais após os impactos econômicos e sociais causados pela pandemia da Covid-19. Mais da metade do valor estabelecido vem de contingenciamentos da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), tributo cobrado sobre produção, licenciamento e comercialização de obras  audiovisuais. Por isso, será destinada ao setor audiovisual. Além disso, propostas como o apoio a reformas e manutenção de salas de cinema, capacitação e qualificação em audiovisual e distribuição de produções nacionais também são apresentadas na lei. 

Julia enfatiza que essas regulamentações foram o resultado de muito esforço da classe artística em conjunto com parlamentares envolvidos com a área cultural, tudo em pleno contexto de pandemia. Segundo ela, a Lei Paulo Gustavo pode se valer de uma estrutura de políticas anteriores, como o Plano Nacional de Cultura e o Fundo Nacional de Cultura, e do trabalho de governos anteriores aos últimos quatro anos. A classe artística vem se movimentando muito antes da implementação das últimas leis e, mesmo durante a pandemia,  não parou de reivindicar seus direitos. 

“Acho que é importante não perdermos esse fio histórico do processo e das pessoas que o constroem. Não são só as instituições, não é só o governo, mas também a sociedade civil e a classe artística. Estão juntos fazendo isso e buscando ampliar a diversidade no setor”, conclui a pesquisadora. 

Por que 19 de junho?

O início do que vemos hoje em alta qualidade, com os equipamentos mais atualizados e em salas ou televisões altamente modernas, se deu, de acordo com muitos, no dia 19 de junho de 1898. Naquele ano, o brasileiro de ascendência italiana Afonso Segreto filmou a Baía de Guanabara a bordo do navio Brèsil. Considerado o primeiro cineasta do Brasil, Segreto voltava da França, onde aprendeu técnicas de filmagem. Tais filmagens inspiraram o documentário feito por ele, intitulado A Praia de Santa Luzia


Sob supervisão de Vanessa Almeida.