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Conexão Literária #15: Nada se perde, nada se cria, nada se transforma

A escritora Lara Liverani traz a história de um Rio de Janeiro futurista

EX-PREFEITAI É PRESA POR MANIPULAÇÃO DE NERVALLINK 

A Ex-PrefeitAI da Lapa Anië Graldiniova foi presa preventivamente, agora pela manhã, durante uma nova etapa da Operação Carioquinha. Ela foi levada para o Departamento de Operações Especiais Estratégicas Musk. Anië foi denunciada pelo Ministério Público Distanciado (MPD) pelo crime de lavagem, que é quando um agente público usa do seu cargo para obter vantagens confidenciais e manipular o NervalLink, tecnologia da Space Musk instalada em toda a população extraplanetária. A Ex-PrefeitAI teria cometido o crime como uma tentativa de manipulação no EAD (Eleição a Distância), que acontece nesta segunda às 15h45 (horário zona oeste). 

Publicado há 9 milésimos pelo SMUK STUDIOS 

DOIS AUTÔMATOS MORREM POR CYBERPSICOSE NA LAPA 

Dois jovens tiveram sua memória completamente deletada no bairro da Lapa, após terem sido diagnosticados com Cyberpsicose pela Assistência Técnica Space Musk. Em nota, a Space Musk disse que, no bairro em questão, ainda é comum a existência da Cyberpsicose, visto que até este momento há uma contrarresposta ao MFC (Mudanças Futuristas Cromadas). O subdistrito aceitou apenas ForeEnergy para abastecer sua comunidade e suportar as luzes neons que dão vida ao bairro quase extinto. 

Publicado há 12 milésimos pelo SMUK STUDIOS 

Luzes de neon. Sonhos de neon. Memórias gravadas infinitamente. A morte é uma opção para que tudo se dissipe feito a fumaça do cigarro que eu costumava fumar antes de te conhecer. Mas é uma opção inviável. O corpo físico pode sofrer traumas, mas a memória sempre é transferida para outro, enquanto aquele é reconstruído como se nada tivesse acontecido. Memórias. A Lapa continua a mesma, sabia? Todas aquelas ruas por onde passamos e nos perdemos, ou fingimos nos perder para ter um momento a mais juntos. 

Eles não conseguiram substituir o samba pelo Poptronik, um dos poucos lugares onde o passado ainda existe em meio a uma multidão de futuristas cromados. O passado, a memória. Memórias. A fumaça ácida de um Marlboro velho — não é apenas o bairro que está trancafiado no primitivo — que sai por minhas narinas me faz lembrar nossa despedida no Boteco Carioquinha. “Sempre que tocar essa música, você vai lembrar desse momento.” Eu sempre estive acostumada com uma roda punk, mas me arrisquei em uma roda de samba em um bairro onde nada envelhece, e o futuro corre atrás dele incansavelmente. Enquanto a vizinhança entoava tons de pagode, louvor e algum samba, eu ressoava os maiores gritos internos —  alguns eu afirmo que a vizinha ouviu através de seus campos magnéticos, ondas de rádio e gradientes de campo instalados no componente artificial para suprir necessidades e funções de indivíduos sequelados (nós). Minha vida ainda carrega feridas de um julho, em meados do verão de 2022, que nunca existiu para você em 2072. Eu nunca existi para você. Sou e sempre serei uma visão pixelada sua. Mais perto, mais longe, você já não me vê, enquanto eu desmorono em cinzas, pó de silício, jogada ao vento atravessando a ponte Rio-Niterói, mas nunca chegando até você. 

Vez ou outra apareço no Heavy Beer, sei que você costumava passar por lá. Ainda me lembro disso. A AI-tendente sempre me oferece o padrão, um Kin Lightwave. Toda vez eu nego. Ainda estou presa à respeitada (talvez não mais) Vodka pura com gelo. Sempre peço uma garrafa inteira e mergulho naquela multidão de croma, metal e, quiçá, um pouco de carne humana. Me afogo na bebida e no mar de pessoas, mas você não vem me resgatar. Te procuro em outros corpos, outros planos, mas sempre acordo com algum dinossauro do futuro ao meu lado, ainda tonteada pela fotofobia gerada pelo álcool em relação ao neon extremo que tudo tomou. Tudo é luz, você é minha escuridão, coberta por pigmentos, laivos da gênese do pecado. Todas as luzes se apagam quando em minha memória você chega, fico cega à sua procura. Para onde foi você? Para onde foram todos aqueles sentimentos e palavras escritas com tanta valia (ou só pareciam ser)? Para onde? Estão tão perdidos quanto nós naquelas ruelas confusas de um bairro onde todos parecem muitos e ao mesmo tempo um? Foram apenas delírios que se dispersaram feito o tabaco que eu inalei e emanei? Meu NervalLink falhou em algum momento, criando memórias inexistentes? Sei que a última opção é impossível, a Space Musk certificou a incapacidade do NervalLink de criar hologramas mentais — a antiga Esquizofrenia —, a não ser que você tenha uma Cyberpsicose, o que era normal no início dos testes. Hoje não mais. 

A ideia de que possa existir uma Replika sua na qual eu sou alguém — e não um vazio, uma censurada em sua visão —, sempre vem em minha mente, ainda que não seja você, ainda que as memórias do que tivemos não existam. Sim, eu sei que posso transferir todos os dados do que tivemos para qualquer ser autômato. Mas não há transferência de dados digitais que faça o toque de um estranho ser seu toque biossintético, seu carinho em meu rosto, sua digital tocando a minha enquanto subíamos a Escadaria Selarón em uma noite de sexta em um bairro que nunca dorme no centro do Rio de Janeiro. Ele não me permite parar de pensar em você, nem em meus sonhos e pesadelos digitais. 

A vida não me deu uma segunda chance, nem um recomeço. Continuo presa numa cidade que vive acordada, mas, ao contrário de mim, muda todas as noites e dias. 

A vida tenta voltar ao normal, mas eu continuo tragando meu cigarro e seguindo a fumaça em busca de encontrar algum sinal, emoção, você. As luzes neons não me iluminam até ti. A vida tenta voltar ao normal. Eu tento. Mas isso não vai acontecer enquanto eu não tomar coragem de apagar a centelha que ainda existe em uma caneca velha, me levantar e tentar me perder de você, nesse mar de aço.

Lara Liverani 

“Epíteto da mitologia romana (“Deusa do silêncio”), deserto-me dessa sina, sendo formanda em Letras e poliglota, ao mesmo tempo em que tento fugir da ternura que vêm das palavras fazendo técnico em Química, numa tentativa falha de ser movida pela exatidão numérica.”

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