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Pelo Campus Sociedade

Saberes tradicionais conquistam lugar institucional

Reunião aberta da Superintendência de Saberes Tradicionais com a comunidade acadêmica marca o início das atividades oficiais do grupo

A Superintendência de Saberes Tradicionais (Supersaberes) do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro realizou, nesta quarta-feira, 8/2, a primeira reunião como órgão oficial. No evento, mediado pela superintendente, Marcia Cabral, docente do curso de Terapia Ocupacional, e sua substituta, Bia Samira Lima da Costa, do Programa de Pós-Graduação de Psicossociologia do Instituto de Psicologia da UFRJ, estavam presentes representantes de grupos ligados às pautas tradicionais de diferentes cursos da UFRJ. O intuito do encontro era apresentar o novo órgão à comunidade acadêmica, promover rede de diálogo entre os projetos já existentes na instituição e demonstrar a pretensão da Superintendência em incluir de maneira concreta a participação dos saberes tradicionais no ensino, na pesquisa e na extensão.

Saberes tradicionais como pauta acadêmica

“É importante ter um local de gestão para fomentar e potencializar o que já existe. Esse é o lugar da Superintendência. Nós não estamos inventando a roda, ela já está rodando há muito tempo. Nós só queremos dizer: vamos fazer, de uma roda, um caminhão.”

É o que diz Marcia em entrevista ao Conexão UFRJ sobre a criação da Superintendência como forma de reunir todos os projetos de extensão, grupos, pesquisas e pensadores voltados aos conhecimentos tradicionais que já atuam na Universidade, como a Companhia Folclórica, os projetos de extensão Rodas de Filosofia e Transculturalismo e Floresta Cidade. Segundo ela, a intenção da Supersaberes é criar uma rede institucional para que os saberes tradicionais sejam difundidos para dentro e fora do ambiente acadêmico. Além disso, em longo prazo, pretende-se criar redes estaduais e nacionais de saberes tradicionais entre as Superintendências da UFRJ e de outras universidades e o poder público. Marcia menciona também o desejo de colocar a Supersaberes à disposição do Ministério dos Povos Originários e do Ministério da Igualdade Racial para futuras interlocuções. “Porque juntos somos mais fortes”, diz.

Na foto, Marcia Cabral aparece usando óculos de grau redondos, blusa branca, colar vermelho e brinco no formato quadrado.
Marcia Cabral é a superintendente da Supersaberes. | 
Foto: Eneraldo Carneiro (FCC/UFRJ)

Segundo a assessora acadêmica da Pró-Reitoria de Extensão (PR-5) da UFRJ, Andreia Martins, presente na reunião, há grande dificuldade em localizar qualquer projeto de extensão no sistema oficial da Universidade, incluindo aqueles relacionados a comunidades tradicionais. A questão já vinha sendo um problema para Marcia e Bia nos primeiros trabalhos de mobilização para uma reunião de projetos e ações voltados aos saberes tradicionais pertencentes à UFRJ.

“Foi aí que entendemos a necessidade de construir um espaço institucional para isso. Porque essas pessoas já existem, já estão trabalhando, já estão fazendo atividades. Vamos só facilitar que elas se encontrem”, explica Bia. 

Por isso, o objetivo inicial da Supersaberes é promover o mapeamento tanto das ações vinculadas a saberes tradicionais que já existem na UFRJ quanto de mestres e mestras do estado, para que seja possível a formação de uma rede de diálogo e troca de conhecimentos entre projetos, estudantes, mestres, mestras e professores. Segundo Bia, o intuito da Superintendência não é fazer com que as pessoas conheçam comunidades tradicionais, e sim que esses grupos, que já têm acúmulos de conhecimento e sabedoria, ocupem lugares como pesquisadores, professores e extensionistas. Ou seja, que façam parte de forma integral do ambiente acadêmico e tragam outras formas de produzir conhecimento, ciência e pesquisa para dentro da Universidade.

“A UFRJ tem uma ponte do conhecimento. Mas por enquanto ela é uma via de mão única, porque produzimos conhecimento para levar para fora da Universidade. Nós [Superintendência] vamos fazer essa ponte virar, no mínimo, uma via de mão dupla”, destaca Bia.

Além disso, Marcia enfatiza que um dos pilares da Superintendência nesse processo de fortalecimento e reconhecimento dos saberes tradicionais é também a valorização material. Em outras palavras, fazer com que mestres e mestras recebam retornos remunerados ao difundirem os seus conhecimentos. Nas palavras da superintendente, a atuação do órgão se pauta na ideia de “restituir uma dívida histórica” e “promover a reparação” na perda desses saberes tradicionais pertencentes à cultura brasileira. Isso se dará pela consolidação de políticas institucionais de inclusão e participação dos saberes tradicionais, além da realização de ações conjuntas entre os grupos e de espaços de encontro.

Não só o reconhecimento de mestres e mestras é importante, mas também a inclusão de estudantes oriundos de comunidades tradicionais, como algo relevante no papel da Superintendência de Saberes Tradicionais. Segundo Marcia, muitos se sentem deslocados no ambiente acadêmico justamente pela falta de reconhecimento e identificação, o que resulta na dificuldade de permanecer ali. O entorno não é algo que “acolha as multiplicidades”. Por isso, a Supersaberes tem a pretensão de implementar políticas de acesso e permanência para tais grupos de notório saber de forma institucionalizada. Márcia complementa: “Não é como um evento sazonal como o mês de abril para os indígenas ou o mês de novembro para a população negra quilombola. Nós temos um compromisso ético, técnico e político de fomentar que esses saberes tradicionais se transversalizem pelos diversos campus da Universidade. Até porque a formação na universidade não é só uma formação profissional, é também cidadã e existencial”.

O que são os saberes tradicionais 

Conhecimentos de indígenas, quilombolas, povos de terreiros, benzedeiras, pescadores, “cavalos marinhos”, marisqueiras, ribeirinhos, entre outros, e comunidades sazonais, como grupos brincantes e cordelistas, são saberes antigos e vinculados à história do Brasil. Além disso, carregam histórias, vivências, origem e significado para a cultura brasileira. Por esse motivo, acumulam conhecimentos originários, que vêm muitas vezes da relação com a terra, o sol e a natureza. Saberes que, de acordo com Marcia, são cada vez mais “apropriados” pelo sistema, pela indústria e pelo mercado, e esquecidos. Ela conta que muitas práticas tradicionais são extintas pelo estímulo ao capital e ao lucro. 

“Estamos falando de práticas que alimentavam uma comunidade inteira, como regiões de mulheres marisqueiras que tratavam os mariscos, fonte de alimento e de renda para a sua comunidade. Aí vêm as indústrias e os grandes empreendimentos imobiliários, oferecem uma miséria pela casinha do pescador e criam ali os seus resorts.”  

Na foto, pessoas de diferentes comunidades tradicionais. Da direita para a esquerda estão, um homem preto, quatro indígenas de diferentes etnias, uma idosa preta, crianças de comunidade originárias e um homem preto de um povo tradicional usando um adereço verde na cabeça e colares.
Ilustração usada para campanha de prevenção da disseminação do novo coronavírus entre populações tradicionais. | Foto: Davis Sousa

No entanto, na opinião de Marcia, existem muitos exemplos de resistência dessas comunidades tradicionais, as quais buscam vencer as expansões imobiliárias que avançam sobre suas terras. A Superintendência, portanto, é uma forma de consolidar esses saberes e localizá-los dando a eles mais importância. 

Surgimento 

A nova Superintendência pertence ao Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, juntamente com as superintendências de Difusão Cultural e de Divulgação Científica. Para Marcia, a ideia de pertencer ao FCC surgiu da necessidade de abranger as três diretrizes da Universidade − ensino, pesquisa e extensão − na Superintendência e promover a transversalidade entre essas áreas e os saberes tradicionais. A Supersaberes foi aprovada no Conselho Universitário (Consuni)  da UFRJ em maio de 2022.