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Opinião

[Da Sala de Aula] O 15 de outubro na prática: Carnaval ou quarta-feira de cinzas?

A reflexão da professora de História Lucilia Dieguez sobre a data comemorativa

Minha carreira como docente iniciou em 2005, ano em que entrei também para a Prefeitura do Rio de Janeiro. Até então, toda minha trajetória era constituída pela pesquisa científica, cujo primeiro contato ocorreu na graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), perpassando por inúmeros trabalhos em arquivos até chegar ao mestrado, onde me debrucei profundamente sobre as fontes inventariais e testamentárias. 

Remexendo as memórias, à época, o encontro com a sala de aula foi impactante, de forma positiva e negativa; prontamente, houve a percepção de que o ato de ensinar não sobrevivia sem o de aprender – e não me refiro apenas aos muitos e heterogêneos grupos discentes que conhecia, mas falava de mim mesma. De nada adiantaria proferir as inúmeras teorias aprendidas na universidade, se não me dispusesse a estudar o que eu tinha diante dos olhos: o material humano, isto é, os estudantes que entravam e saíam a cada cinquenta minutos das aulas.  

Inicialmente, cometi falhas e acertos, me questionei, questionei os alunos, me fragilizei e me fortaleci à medida que cada passo caminhado indicava um novo horizonte. Aos poucos percebi que aquele espaço de aprendizagem não era fechado, contido e extremamente organizado a partir do alinhamento de mesas e de cadeiras. Esse ambiente existiria de múltiplas formas: assim como o aluno que eu ajudaria a formar, só desabrocharia com pitadas de audácia, coragem e proatividade; o raciocínio crítico que tanto ambicionava que me mostrassem deveria ainda ser instigado por mim, revendo minhas práticas e planos.

À medida que desatava nós e gerava possibilidades de conhecimento para que os estudantes de fato o construíssem, erguia, no outro lado, minha própria docência: me compreendia como professora e costurava as teorias historiográficas a um ensino mais concreto, transformando a ciência histórica em trabalhos palpáveis, estabelecendo relações de sentido entre alunos e a História, entre vida e ciência, entre sujeitos da História. Foram esses fios desenrolados que conduziram minha estrada e que me levaram a enxergar além de um quadro branco – no início da carreira ainda de giz – e de um livro didático; minha opção foi de, pelo menos uma ou duas vezes ao ano, produzir, junto às turmas, atividades práticas, cujas propostas variavam de série a série e que abarcassem uma temática trabalhada no Ensino de História. Assim, ao longo desses anos, foram elaborados quebra-cabeça, jogos de roletas, feira de especiarias, cenário vivo, ambiente criado, entre muitos outros.

Partindo desses projetos, minha tarefa foi sempre a de analisar as relações de sentidos edificadas entre as turmas e as temáticas por elas escolhidas, a de trazer os educandos para o tempo presente a partir de questões do passado. Como disse o filósofo alemão Rüsen, as questões que envolvem o presente dirigem o ser humano ao passado. Uma inquietação sempre rondou minhas análises: com quem produzimos? Quais os públicos que pretendemos alcançar? Portanto, deve-se considerar os resultados apresentados pelos estudantes não somente como um ponto de avaliação, mas como um trabalho de autorias compartilhadas, atestando os aspectos da aprendizagem histórica das classes solidificou o que eu acreditava ser relevante na construção do conhecimento.

Assim, me deparei comigo e com os alunos extrapolando os muros – ou seriam portas? – da sala de aula convencional. Desafiamos, em cada atividade prática, os discursos ouvidos com frequência na própria unidade escolar, de que o aluno teria que ficar em sala ou mesmo de que as atividades só poderiam ser feitas em no máximo dois tempos de aula. Ocupar espaços era uma forma de combater negacionismos e resistências, muitas vezes presentes nas próprias escolas e que podem ser empecilhos para o próprio conhecimento. Afinal, o que quer a escola? Um aluno aprendiz ou um aluno estudante? Espectador ou protagonista? 

Diante deste relato por mim apresentado, mais inquietações norteiam meus pensamentos: o 15 de outubro, data-símbolo do Dia do Professor/Professora, requer comemorações ou reflexões? Mesmo que haja discussões constantes acerca do trabalho docente e dos obstáculos impostos às suas ações mais eficazes, ainda presencio que, anualmente, a data se torna uma chuva de dizeres gentis e de agradecimentos enviados em aplicativos de mensagens ou mesmo nos murais das escolas. Caracteriza-se o dia como comemoração, festividade, alegando que os docentes têm caminhos tão difíceis que é preciso reacender a chama da alegria pelo magistério.

Seria o 15 de outubro Carnaval ou quarta-feira de cinzas? Cabe a mim, enquanto docente de História, raciocinar sobre os fatos presenciados. As instituições de ensino devem e necessitam enxergar as estratégias dos docentes fora dos muros da sala convencional e beber dos argumentos de Estevão Rezende de Martins, quando diz que a aprendizagem histórica do indivíduo se dá na informalidade e na formalidade, ou seja, no cotidiano e na estrutura escolar. Somo a isso que as escolas devem ainda evitar os silenciamentos dos trabalhos dos professores, incentivar os debates de temas sensíveis e aproximar a comunidade escolar como um todo. 

Talvez se, lá em 2005, não me impactasse com os problemas e as adversidades da sala de aula, seria mais um indivíduo que desistiria do magistério e investiria em outra área. Entretanto, optei por transformar a sala, por planejar e replanejar de acordo com o ritmo da minha maior fonte que tinha: a turma. É claro que poderia, mesmo diante dos impasses, sempre transitar pela zona de conforto, realizando o mínimo, e aí sim, ver o 15 de outubro como Carnaval e utilizar frases clichês de efeitos reluzentes. Neste caso, preferi e prefiro a quarta-feira de cinzas, que me entrega realidades a serem transformadas constantemente; muitos docentes também simpatizam com essa ideia.  A questão não é a data, mas sim o que é feito com ela.

Lucilia Maria Esteves Santiso Dieguez
Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em História Social pela mesma instituição, também é autora do livro Dona Leonarda Maria da Silva Velho: uma Dama da Corte Imperial, lançado pela Editora Dialética em 2020. Além disso, publicou artigos na área de Ensino de História e Gênero e é membro do grupo de estudos Aprendhis Goiás.