Por Coryntho Baldez
O Complexo de Formação de Professores da UFRJ é uma iniciativa inédita e inspiradora para o Brasil e o mundo, de acordo com António Nóvoa, professor catedrático da Universidade de Lisboa e conceituado pesquisador em História da Educação. Nesta entrevista exclusiva, ele afirma que a ideia de reunir diversos atores vinculados à formação de professores em uma rede institucional comum – “um terceiro espaço” –, embora discutida há alguns anos, raramente é concretizada.
Experiências como a do Complexo, segundo o pesquisador, são absolutamente centrais para a formação do profissional docente e para a construção de uma universidade aberta, cidadã, plural e “ligada à pólis”. Após citar o “trio sensacional de educadores brasileiros do século XX” que o influenciou – Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro –, Nóvoa faz uma menção especial a João Guimarães Rosa e ao seu conto A Terceira Margem do Rio.
A obra do extraordinário escritor brasileiro foi fonte inspiradora para as reflexões de Nóvoa sobre políticas públicas educacionais no campo da formação docente realizadas em um “terceiro lugar”, que congregue universidade, escolas, sociedade e professores universitários e da educação básica. O pesquisador português fala ainda, nesta entrevista, sobre o papel da universidade no tempo presente e adverte que fatores políticos e mercantilistas reduzem, muitas vezes, a liberdade acadêmica de professores e pesquisadores.
“A universidade tem que ser capaz de compreender que a sua maior utilidade é ser diferente das lógicas produtivistas que regem a economia”, assegura.
Coryntho Baldez: Em recente palestra na UFRJ, você citou o Complexo de Formação de Professores da UFRJ como uma experiência potencial única no mundo. Que papel poderá ter o Complexo na construção do profissional docente do século XXI?
António Nóvoa: Particularmente, prefiro chamá-lo de Complexo de Formação de Professores da UFRJ do Rio de Janeiro. Porque ele precisa envolver a universidade, mas muitos outros atores, como escolas, professores, associações, municípios, estados etc. Essa é uma arquitetura de que falamos há muitas décadas na área de formação de professores. É a ideia de um terceiro espaço, que junta universidades e escolas, mas que tem sido pouco concretizado no mundo do ponto de vista institucional. Esta nova institucionalidade criada aqui na UFRJ é inédita do ponto de vista global e pode ser uma experiência extraordinariamente importante e inspiradora não só para o Rio de Janeiro e o Brasil, mas para o mundo.
Coryntho Baldez: Em artigo publicado na Revista Contemporânea de Educação, da Faculdade de Educação da UFRJ, você disse que a universidade precisa pensar e antecipar o futuro. Na sua avaliação, o Complexo pode contribuir com a necessidade de alargar o horizonte de atuação da universidade?
António Nóvoa: Certamente. Estamos dentro de uma lógica, do ponto de vista teórico, do que chamamos de ‘terceiros espaços’. Daqui de onde falamos, o Parque Tecnológico da UFRJ [onde se localiza o Complexo] é um terceiro espaço, um espaço de prolongamento da universidade na sua relação com a sociedade. O Complexo Hospitalar é um ‘terceiro espaço’, ou seja, um espaço de ligação entre a universidade e os compromissos políticos na área da saúde. O Complexo de Formação de Professores também é um terceiro espaço, pois permite essa ligação da universidade com a sociedade e a educação pública.
Coryntho Baldez: E que desdobramentos isso tem?
António Nóvoa: O Complexo abre um conjunto de novas oportunidades para a universidade. Permite-lhe cumprir a sua responsabilidade social e pública, ser capaz de caminhar para outro futuro e se construir como universidade aberta, plural e ligada à cidade. Uma ‘UniverCidade’ com ‘c’, como chamávamos a Universidade de Lisboa quando fui reitor da instituição. Isso significa uma universidade da pólis, da responsabilidade pública, da participação política, cidadã, capaz de levar o conhecimento à sociedade. No caso do Complexo, trocar conhecimento com a escola, com os professores, torna-se um fator essencial na construção de políticas públicas de educação. Precisamos de um ‘lugar’ para esse encontro e para materializar o compromisso com a educação pública. No Rio de Janeiro, esse lugar é o Complexo.
Coryntho Baldez: A Cátedra Anísio Teixeira é uma iniciativa do Complexo de Formação de Professores que pretende valorizar a dimensão da pesquisa. Você considera que a Cátedra pode se transformar em uma referência teórica para explorar novas questões no campo da formação de professores?
António Nóvoa: A Cátedra é exatamente um projeto que busca dar certo corpo teórico ao trabalho do Complexo e, ao adotar o nome Cátedra Anísio Teixeira, presta uma homenagem a um dos grandes educadores brasileiros e mundiais. Aliás, o Brasil teve um trio de educadores no século XX absolutamente sensacional, formado, além de Anísio Teixeira, por Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Com a homenagem a Anísio Teixeira, quisemos explicitar que a ambição da Cátedra é ser uma referência no pensamento e na produção científica internacional sobre formação de professores, a partir de um diálogo com o Complexo, as escolas, a UFRJ e os pesquisadores.
Coryntho Baldez: A autonomia e a liberdade acadêmica, princípios que a Cátedra Anísio Teixeira quer valorizar, enfrentam algum tipo de risco no tempo presente?
António Nóvoa: É um tempo muito difícil para as universidades, que estão sendo muito condicionadas de ‘fora’, seja do ponto de vista político ou mercantilista. Mas há também um grande condicionamento de ‘dentro’. Nós próprios, dentro da universidade, adotamos critérios produtivistas de avaliação de professores, adotamos regras de funcionamento que, muitas vezes, diminuem a liberdade acadêmica e a liberdade de professores e pesquisadores. Portanto, a universidade está num momento muito difícil da sua vida.
Coryntho Baldez: Ela saberá reagir?
António Nóvoa: A universidade tem que ser capaz de compreender que a sua maior utilidade é ser diferente. É ser diferente da economia e das empresas, é ser diferente do conjunto de outras lógicas que, de algum modo, a condicionam. Somos úteis para a sociedade na medida em que somos diferentes de outras instituições. Se é para sermos iguais às empresas, às fundações, e geridas da mesma maneira, a universidade será dispensável. Nós temos que marcar a nossa diferença e, nela, há um tema que me preocupa ‘imenso’, que é o tema do tempo.
Coryntho Baldez: Pode explicar melhor esse aspecto, professor?
António Nóvoa: O tempo da universidade é diferente do tempo da sociedade e da economia. Precisamos de mais tempo para fazer as coisas, para errar, para duvidar, para partilhar, dialogar e para amadurecer as nossas ideias. A economia, muitas vezes, não tem esse tempo. A empresa tampouco, senão vai à falência. A universidade proporcionar esse tempo àqueles que nela estão é central. Todas as grandes invenções tecnológicas do século XX foram desenvolvidas primeiro dentro da universidade. São descobertas científicas que, posteriormente, tiveram um grande desenvolvimento tecnológico. Este é o grande tema que temos pela frente. Precisamos ser capazes de ser diferentes para que, assim, sejamos mais úteis à economia, à sociedade e à cidadania de modo geral. Se formos diferentes, poderemos ser de enorme utilidade para as sociedades do futuro.
Coryntho Baldez: Você costuma dizer que o conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, teve uma grande influência em suas reflexões no campo da educação. Como se deu o encontro do seu pensamento com a produção literária desse grande escritor brasileiro?
António Nóvoa: Todo o meu pensamento é profundamente influenciado por autores brasileiros. Já falei do Anísio Teixeira, do Paulo Freire e do Darcy Ribeiro. Quando vejo as memórias do Darcy Ribeiro, por exemplo, parece que ele está a falar de mim, tal a maneira que me revejo no seu pensamento. A literatura brasileira, desde muitos anos, é um ponto de referência absolutamente central para mim. Ariano Suassuna, Clarice Lispector, Drummond de Andrade e, obviamente, João Guimarães Rosa, um homem absolutamente extraordinário. O seu conto A Terceira Margem do Rio foi, para mim, muito importante. Ali, Guimarães Rosa explica uma coisa que parece tão simples: que a vida se faz na terceira margem do rio, ou seja, no próprio rio. É no curso do rio, em seu movimento, que se se faz a vida. A vida não se faz numa margem imóvel e nem na outra. Ela se faz no meio, no movimento, por vezes turbulento, por vezes calmo – são momentos de imprevisibilidade. Mas é habitando essa terceira margem que podemos construir alguma coisa diferente na área da educação.
Coryntho Baldez: Como?
António Nóvoa: Em certo sentido, o Complexo de Formação de professores é um terceiro lugar. É esse lugar onde as coisas acontecem. Há muitos futuros diferentes, há muitas coisas diferentes que podem acontecer. Temos que ter um lugar, que é o Complexo, onde possamos discutir, conversar, debater, dialogar, produzir ideias e experiências novas. Um lugar para ir abrindo esse futuro de que o Brasil precisa na área da educação. E para dar vida à dimensão pública da educação. Não há educação se não houver alguma coisa comum no espaço público. O Complexo é a produção desse comum, que se faz a partir da capacidade de habitarmos a terceira margem do rio. O Complexo de Formação de Professores da UFRJ do Rio de Janeiro é a terceira margem do rio do João Guimarães Rosa.
António Nóvoa é professor catedrático da Universidade de Lisboa e conceituado pesquisador em História da Educação. Português, é autor de mais de 100 trabalhos científicos na área pedagógica e se destaca como organizador de grandes debates internacionais sobre o ensino.