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Conexão Literária

Conexão Literária #1: Tempo

Conto do bibliotecário Alexandre Silva estreia nova coluna do Conexão

A chuva fina caía lá fora deixando o sábado preguiçoso. A pedalada programada para o dia derrapou. Oito horas. Embora funcionasse, o relógio tinha ares de parado. Levantar ou ler sob o cobertor? Olhou a pilha de livros na mesa de cabeceira. Tentaria cumprir parte da promessa de início de ano: ler pelo menos um clássico da literatura por bimestre. Julho corria solto e, até agora, nada. Bentinho, Macabéa, Riobaldo, Elisabeth Bennet, Gregor Samsa e Raskólnikov aguardavam desde janeiro. A disputa pela atenção da leitora e pela primazia da escolha já não mais existia. Tomaram-na por volúvel e seguiam suas vidas desassossegadas, cada qual em suas próprias páginas. Seria preciso adaptar a promessa ou adiá-la mais uma vez. A visão dos livros sobrepostos foi decisiva para fechar a questão: seguiria com a segunda opção.

As costas doíam, não poderia continuar deitada. Ergueu-se e girou as pernas para fora da cama tão lentamente quanto os ponteiros do relógio. Oito e cinco. Os pés se assustaram com o chão gelado. Após colocá-los em segurança na borracha fria do chinelo — ainda assim mais agradável que o sinteco gelado —, espreguiçou e coçou agradavelmente o corpo com a ponta dos dedos. Levantou e foi ao banheiro, com uma leve pressão na bexiga. Sentiu-se repelida pelo normalmente aconchegante e confortável assento sanitário almofadado. Estava gelado. Percalços de inverno. Deu a descarga, lavou rapidamente as mãos, enxugou-as na toalha e tocou o rosto quente com os dedos frios após o contato com a água congelante da torneira. Um choque que serviu para o despertar total.

Precisava decidir o que fazer no dia arrastado. Oito e oito. Só conseguiria pensar após um café. Foi à cozinha com os braços encolhidos sobre o peito para amenizar o frio. Colocou água para ferver, pegou o pote de café, ajeitou coador e filtro de papel em cima da garrafa térmica e colocou três colheres de sopa de pó. Gostava da bebida forte e misturada ao leite. De repente se lembrou do café especial que havia ganhado de uma amiga. Ela e o marido tinham uma cafeteria. Numa das visitas ao local, elogiou o sabor e ganhou um pacote do produto cultivado no sul de Minas por familiares do casal. Pegou o café especial e devolveu o industrializado ao pote. A amiga lhe ensinou a extrair o melhor da bebida: prepará-la com água mineral ou filtrada e não deixar ferver, pois queimava o café. Trocou a água que já fumegava no fogão por outra de seu filtro de barro. Oito e dezoito. Despejou em sua caneca vermelha dois terços de leite e completou com a bebida recém-preparada e três colheres rasas de açúcar.

O aroma do café tomou conta do ambiente agora levemente aquecido e fez o percurso nariz−cérebro, destravando memórias. O cheiro mexeu na configuração espaço-tempo e transformou a mulher em menina e sua casa na da avó paterna, mais de vinte anos atrás. Além do tradicional café moído na hora pela dona da casa, misturado ao leite para a neta, a garota comia um pedaço de pão cortado em quatro. Ela raspava o miolo amanteigado com os dentes e molhava o restante na bebida quente. Comia feliz aquela maçaroca. Vó Dondinha — seu nome era Dora, Dondinha era uma variante de Dorinha, criada pela criança — molhava no seu café com leite uma fatia de pão com manteiga e tudo. A menina fazia cara de nojo, não admitia que o salgado da manteiga e o doce da bebida se misturassem. Coisa de quem está descobrindo o paladar. A mulher ria e dizia para a neta que era assim que gostava e não via motivo para aquela cara. A resposta à Dondinha vinha em linguagem infantil:

— É úim!

De volta a sua casa. A lembrança passou, assim como o tempo. Oito e quarenta e cinco. A bebida havia esfriado. Ela se levantou, preparou uma nova, cortou um pão francês meio dormido, passou manteiga e dividiu em quatro pedaços. Sentou-se e, com o rosto ainda molhado de lágrimas, mergulhou uma tira de pão e manteiga no café com leite e comeu, assim como vó Dondinha fazia até pouco tempo atrás. Ao morder a massa amolecida, sentiu um gosto de saudade insuportável.

Alexandre Silva. Pai da Ana (a humana), da Panqueca e da Pequena (as “cãs”). Servidor público (com orgulho), bibliotecário da UFRJ (uma esperteza para ficar próximo aos livros no trabalho), exerce assiduamente seu direito de ler e bissextamente o de escrever.