O aprendizado das crianças brasileiras nos primeiros anos escolares foi mais lento, impacto de até quatro meses para o desenvolvimento da linguagem e matemática, em decorrência das interrupções das aulas presenciais como medida protetiva contra a covid-19. A perda foi ligeiramente maior do que a observada em pesquisas internacionais − em geral em torno de dois a três meses. Esses foram os principais resultados encontrados por um estudo coordenado pelos pesquisadores Mariane Koslinski e Tiago Bartholo, do Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais (Lapope), da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio De Janeiro (UFRJ). Uma preocupação dos pesquisadores é como reverter as desigualdades de aprendizagem observadas durante a pandemia, ainda mais que, a partir de 3/11, as aulas presenciais na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro voltarão a ser obrigatórias.
Os pesquisadores apresentaram no início de outubro, no IX Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, o estudo “O impacto da pandemia do covid-19 no desenvolvimento das crianças na pré-escola”. A pesquisa acompanhou o desenvolvimento de 671 crianças matriculadas em 21 escolas da rede conveniada e privada da cidade do Rio. Dessas, 460 frequentaram o segundo ano da pré-escola em um contexto de normalidade em 2019, e 211 crianças frequentaram o segundo ano da pré-escola em 2020, em um cenário pandêmico. Todas as crianças participaram de testes individuais, em dois momentos, que permitiram medir o desenvolvimento delas ao longo dos respectivos anos letivos.
As crianças que vivenciaram o segundo ano da pré-escola em 2020 aprenderam em média 66% em linguagem e 64% em matemática, comparando-se com o aprendizado das que frequentaram a mesma etapa escolar em 2019. As crianças de nível socioeconômico mais baixo aprenderam um pouco menos da metade – aproximadamente 49% para linguagem e 47% para matemática, comparadas com as crianças que tiveram a oportunidade de frequentar a pré-escola com atividades presenciais.
Ao final do ano letivo em 2019, 60,1% das crianças da amostra eram capazes de identificar números de dois dígitos e fazer contas mais simples. No grupo de 2020, apenas 50,6% desenvolveram a habilidade. Já no desenvolvimento da linguagem, ao final de 2019, aproximadamente 60% das crianças foram capazes de identificar 18 letras apresentadas em um caderno ilustrado. Em 2020, apenas 45% conseguiram identificar o mesmo conjunto de letras.
De acordo com Bartholo, são poucos os trabalhos existentes para avaliar os impactos da pandemia na educação infantil. “Em uma rápida revisão da literatura, observamos que esse é possivelmente o primeiro estudo na América Latina, com medidas diretas sobre o desenvolvimento cognitivo e motor das crianças e desenho robusto sobre o impacto da pandemia na educação infantil. Trata-se de um esforço de diagnóstico e, claro, que a gente estava querendo olhar para a frente e por isso pensamos em recomendações. Com a interrupção do ensino presencial − importante sempre lembrar que as escolas continuaram em atividade no formato remoto −, as crianças progrediram, mas em um ritmo mais lento. Descobrimos nos estudos antes da pandemia que havia grandes desigualdades educacionais, fortemente associadas ao perfil socioeconômico das famílias. O estudo de impacto da pandemia evidenciou que essas desigualdades preexistentes se ampliaram. Há uma mensagem importante aqui sobre a importância do investimento nas políticas para a primeira infância como estratégia-chave para a redução das desigualdades educacionais e sociais no país.”
Os pesquisadores apontam sugestões para recuperar o que as crianças não aprenderam. O primeiro passo seria realizar um diagnóstico individual para descobrir as crianças que tiveram menores oportunidades de aprendizado durante a pandemia e o período de fechamento das escolas para atividades presenciais. Em seguida, deve ser elaborado um plano individual de recuperação de aprendizado para as crianças que iniciam o ensino fundamental, com programas de reforço escolar ou de tutoria para grupos menores, mas que priorizem os estudantes mais vulneráreis. “O foco deve ser em cima desses alunos, ou seja, crianças de famílias com baixa escolaridade, com menor renda e participantes de programa de transferência, cujos responsáveis apresentam inserção mais frágil no mercado de trabalho. Elas foram as mais afetadas na pandemia”, enfatizou Mariane Koslinski.
Os pesquisadores ressaltam que, além do diagnóstico e foco nas crianças mais afetadas pela pandemia, é importante evitar ações que possam acentuar as tendências de desigualdades observadas durante a fase de isolamento social. “É preciso evitar a ampliação da segregação das crianças a partir de medidas como ‘enturmação’ precoce ou rodízio por habilidade. Essas ações em geral tornam as turmas mais homogêneas, mas não beneficiam as crianças mais vulneráveis e não contribuem para diminuir as desigualdades. O Brasil precisa que as redes escolares realizem diagnósticos e monitorem os programas de aprendizado já testados”, apontou Koslinski.
De acordo com Bartholo, os diretores, coordenadores pedagógicos e professores observarão um provável aumento da variação na aprendizagem dos alunos, com grupos de estudantes, os que progrediram mais e os que ficaram para trás durante a pandemia. “Nós tememos que algumas redes de ensino implementem programas que separem os alunos que aprenderam menos durante a pandemia em turmas ou escolas específicas. Essa tentativa de criar grupos mais homogêneos do ponto de vista do desenvolvimento tende a aumentar a segregação escolar considerando o perfil socioeconômico das famílias e pode aumentar as diferenças de aprendizagem. As literaturas internacional e nacional sugerem que sistemas educacionais menos segregados tendem a gerar ganhos médios no aprendizado e beneficiar mais os alunos em situação de vulnerabilidade social”, destacou.
Para os pesquisadores, as interações sociais que ocorrem presencialmente foram limitadas no ensino remoto, pois as crianças ficam mais dispersas em atividades em casa e precisam contar sempre com o apoio dos responsáveis. Em sala de aula, os professores conseguem trabalhar em grupos menores e desenvolver várias outras estratégias pedagógicas que são muito mais ricas e possibilitam mais oportunidades de aprendizagem para as crianças. “Programas de tutoria para grupos pequenos (por exemplo, cinco crianças), em horários alternativos ou em certos momentos do dia, vão favorecer os alunos com maiores dificuldades. Sabemos que esse tipo de programa é eficaz para recuperar o aprendizado, o que é diferente de separar turmas com estudantes mais e menos avançados”, apontou Bartholo.
Mariane Koslinski e Tiago Bartholo defendem a necessidade de uma política pública nacional em educação, com aporte adicional de recursos, para mitigar os efeitos da pandemia no aprendizado, para que as disparidades existentes entre as diversas redes públicas municipais de ensino sejam atenuadas. Esses programas devem focar em três aspectos-chave: busca ativa de alunos (muitos perderam vínculo com a escola), diagnóstico individual que possa abranger não apenas o desenvolvimento cognitivo, mas também aspectos de desenvolvimento motor, socioemocional e bem-estar dos alunos e, por fim, a recuperação do aprendizado com foco nos alunos em situação de maior vulnerabilidade social.