Com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados e rara biodiversidade, o Cerrado é a maior savana da América do Sul, habitat para cerca de 12 mil espécies de plantas e mais de 2,3 mil espécies de animais. “Berço das águas”, é onde nascem as principais bacias hidrográficas do continente – como a Amazônica, a do São Francisco e a do Paraná – e onde planícies intercalam planaltos de mais de 1,6 mil metros de altitude. No Brasil, o bioma ocupa 23,9% do território, incidindo sobre Goiás, Distrito Federal, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, São Paulo e Paraná.
Uma das características do Cerrado é a frequência com que queimadas podem ocorrer. O fogo é um componente do sistema terrestre e responsável pela manutenção da vida em determinadas áreas do planeta. “Para se ter uma ideia, 40% da superfície da Terra, incluindo regiões de savana, mediterrânicas e de florestas boreais, dependem do fogo”, explica Renata Libonati, professora do Departamento de Meteorologia da UFRJ e coordenadora do Projeto Andurá, que acompanha queimadas em territórios indígenas e áreas de conservação.
Um estudo realizado no âmbito do projeto – e publicado em julho na revista científica Journal of Environmental Management – analisou as manifestações do fogo em toda a área cerradeira, nas últimas duas décadas, e concluiu que os incêndios têm comportamentos distintos, conforme região ou ocupação do território. Observou, ainda, que os focos que se alastram, sobretudo, na estação seca – mais ou menos, de maio a setembro – são responsáveis pela maior parte da área queimada.
Baseada em estudos anteriores, a pesquisa dividiu o Cerrado em 19 ecorregiões e usou o sensoriamento remoto como ferramenta de leitura. “Nós optamos por avaliar a extensão, a intensidade do fogo e as cicatrizes – ou seja, os focos individuais –, quer em número, quer em tamanho”, apresenta Patrícia Silva, doutoranda da Universidade de Lisboa em cooperação com a UFRJ e primeira autora do artigo. “Nos últimos 20 anos, as cicatrizes maiores, isto é, os focos maiores de fogo, têm vindo a aumentar”, revela.
Matopiba preocupa
A pesquisa também encontrou gradações entre os extremos norte e sul do Cerrado. “Ao norte temos focos de maior extensão, maior área queimada, maior número de cicatrizes e de maior intensidade. Contrariamente, na parte sul do bioma temos focos de menor intensidade e em número menor”, apresenta Patrícia. Vale destacar que a última fronteira agrícola brasileira, situada entre os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, também conhecida como Matopiba, corresponde ao norte do bioma. Já localizadas ao sul, mais ou menos entre Goiás, São Paulo e Paraná, estão zonas agrícolas e de pastagem consolidadas em meados do século XX.
Considerando as informações obtidas no estudo, é possível perceber que há relação entre as queimadas e a expansão das fronteiras agrícolas no Cerrado. Contudo, a pesquisadora reforça que, para se chegar a uma conclusão categórica, é preciso investigar outros detalhes. “Para avaliar diretamente essa relação teríamos de tentar relacionar esses dados com algum parâmetro do fogo, como área queimada, intensidade, extensão, ocorrência”, completa a doutoranda.
O artigo publicado não se debruça especificamente sobre essa relação entre queimadas e expansão das fronteiras agrícolas, mas os estudos continuam. “Neste momento, estamos a intentar perceber não só o porquê de haver essa disparidade no comportamento do fogo dentro do Cerrado, como o que leva a esta diversidade, quais são as causas disso. Estamos a avaliar nomeadamente o clima, a população e o desmatamento. Mas isso é algo para dizer no futuro”, anuncia.
Estudo inovador
Além de Patrícia Silva e Renata Libonati, assinam o artigo cientistas da Universidade de Brasília, Universidade do Estado do Amazonas, do Instituto Federal Sul de Minas, da Universidade de Münster (Alemanha) e da Conservação Internacional (Moore Center for Science – EUA). No estudo apresentado, o grupo se debruça sobre uma ampla faixa territorial (mais de 2 milhões de quilômetros quadrados) e considera um longo intervalo de tempo (vinte anos), o que garante a inovação. “O fogo pode ser avaliado de diversas formas: em relação à sua extensão, à sua intensidade, velocidade ou frequência. E nós, nesse trabalho, optamos por um número bastante razoável destes parâmetros: área queimada, intensidade e focos individuais. Nesse aspecto, foi a primeira vez, ao conhecimento dos autores, que esse tipo de análise foi feito no Cerrado brasileiro”, defende a pesquisadora da Universidade de Lisboa.
Outra decisão tomada pelo grupo foi a classificação dos focos individuais de incêndio. Assim foi possível compreender, por exemplo, a presença de cicatrizes pequenas ou grandes e se elas mudavam conforme sazonalidade e frequência. “Também foi um estudo inovador pelo quão recente é. Isto é, nós usamos os produtos mais atualizados que existem e, portanto, conseguimos uma informação com melhor resolução, não só em nível espacial como temporal”, diz Patrícia.
Ambiente exige manejos diferenciados
Embora a ocupação humana no Cerrado seja muito antiga (estudos da arqueologia falam em mais de 11 mil anos), foi no último século que ocorreram bruscas e profundas transformações. Depois da Mata Atlântica, é o bioma mais impactado pelo desenvolvimento. Cerca de 20% das espécies de plantas endêmicas já não ocorrem mais no Cerrado e mais de 130 espécies de animais correm risco de extinção. Com a investigação liderada pelo Projeto Andurá, uma das lições é que, justamente porque a ação humana impacta os regimes de fogo, é preciso garantir o manejo das queimadas associado à conservação dos territórios.
“Quando temos fogos que vão além de um regime histórico que o Cerrado está habituado, temos consequências muito dramáticas, não só em termos ambientais e ecológicos, como em termos econômicos e de saúde da população”, ressalta a doutoranda da Universidade de Lisboa. Para Renata Libonati, o estudo pode orientar políticas públicas de forma a reduzir esses impactos.
“A abordagem permite conhecer como funciona o fogo no Cerrado dentro de toda a heterogeneidade que existe no bioma – em termos de tipos de vegetação, de tipos de usos e cobertura do solo, em termos de climas distintos e de manejo da vegetação e do fogo. Portanto, essa nossa análise permite trazer informações importantíssimas para os tomadores de decisão quando estão planejando o manejo integrado do fogo em determinados locais. O que nós mostramos é que não é possível ter uma abordagem única para o manejo do fogo no Cerrado. Pelo contrário. É preciso conhecer as peculiaridades regionais para considerar a melhor forma de atuar e ter as ações de conservação dentro desse bioma”, conclui a professora da UFRJ.