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O desafio de comunicar a favela

Ativistas falam sobre os efeitos da COVID-19 em seus territórios, marcados por racismo e exclusão, destacando a importância da comunicação

O comunicador comunitário é um agente que se dedica a falar sobre o próprio lugar. Busca meios para dar visibilidade à vizinhança, denuncia injustiças, cobra direitos, relata o cotidiano nos pormenores, valoriza o conhecimento local. No Rio de Janeiro, há décadas a comunicação é ponto de partida para inúmeros ativistas, que começam interessados em reportar sua realidade, seguem pelo caminho da mobilização social e ganham o mundo.

No Festival do Conhecimento, quatro desses comunicadores conversaram com a pró-reitora de Extensão, Ivana Bentes, e discutiram como tem sido o enfrentamento da COVID-19 em seus territórios. “Nossa comunicação, neste momento, tem o objetivo de salvar nossas próprias vidas. É nós por nós. É a favela pela favela, encontrando suas soluções de sobrevivência”, afirmou Gizele Martins, jornalista, pesquisadora e moradora do Complexo da Maré.

Durante a live, ela descreveu o processo de formação da Frente de Mobilização da Maré e contou como os movimentos sociais perceberam a necessidade de formular um plano de comunicação para esse período de crise sanitária, definindo diferentes estratégias de ação. “Precisávamos de ferramentas diferentes para atingir um número máximo de pessoas nas 16 favelas.” Assim, recorreram a formatos e linguagens diversas para alcançar perfis diferentes: faixas, cartazes, grafites, outdoors abandonados, carro e bicicleta de som, podcast, jornais locais, site, mídias sociais etc.

Há 20 anos atuando como comunicadora comunitária, Gizele destacou como, muitas vezes, seu trabalho vai além da produção de notícias. “Como fazer uma comunicação que consiga dialogar com a nossa realidade e, ao mesmo tempo, divulgar o que estamos sofrendo, cobrar direitos mínimos, direito à água, à luz, direito ao teste?”, indagou.

No caso do combate ao novo coronavírus, a atuação teve de se somar à ação direta. “Quando a gente se deparou com a fome, percebeu que não daria para fazer só a campanha de comunicação, teria de ir atrás de comida, remédios, recorrer ao poder público etc.”, observou. Um detalhe lembrado por Gizele dá a dimensão do problema enfrentado: “Em 50 minutos, cadastramos mais de 4 mil pessoas”, contou a jornalista, na ocasião em que a Frente de Mobilização da Maré começou a recolher informações sobre as famílias em situação de vulnerabilidade.

René Silva, morador do Complexo do Alemão e criador do jornal Voz das Comunidades, fez relato semelhante, recordando que, no início da pandemia, a tarefa era reunir informações para explicar à população o que estava acontecendo. Com o passar do tempo e a demanda por água, material de higiene e alimentos crescendo, a criação de um “gabinete de crise” para reunir doações e distribuir cestas básicas tornou-se emergencial. “Antes de o vírus se espalhar pela favela, a gente já tinha observado que muitas pessoas estavam em dificuldade, passando fome.”

“Sabíamos que a COVID-19 teria um CEP”, disse ativista. Foto: Artur Moês (Coordcom/UFRJ)

Raull Santiago, também morador do Alemão e representante do Coletivo Papo Reto, reforçou como a exclusão social e o racismo marcam não somente esta fase de enfrentamento da pandemia. “Me torno comunicador comunitário pela vida, pela realidade na qual eu vivo”, afirmou. O ativista mencionou o problema das operações policiais, que mesmo interrompidas por decisão judicial não cessaram.

As reflexões de Raull foram na direção de afirmar a relevância da disputa de narrativas no espaço urbano. “Comunicação comunitária é importante para não deixar que silenciem a gravidade do que acontece nas periferias, para disputar direitos, para enfrentar racismo, para falar que a favela importa, para nos conectar entre redes e para dar visibilidade às potências e às histórias de cada beco e cada viela. Para nós, a favela é o centro da sociedade”, defendeu. E completou: “Construímos pontes, mas isso não é poético, é extremamente doloroso”.

Marcus Faustini, da Agência de Redes para a Juventude, trabalha formando lideranças para o empreendedorismo e a mobilização comunitária. No início da pandemia, ele organizou uma pesquisa com jovens trabalhadores que vivem em regiões periféricas da cidade. A constatação, hoje, é um dado consolidado. “Sabíamos que a COVID-19 teria um CEP.” E continuou: “Ouvimos jovens que lideram famílias, são mototáxis, ajudantes de pedreiro, estão tentando voltar a estudar. Esses jovens precisavam de algum suporte e a gente precisava contar para as pessoas o que estava acontecendo e que o governo não estava produzindo conhecimento sobre eles, estava atrapalhando”.

Marcus falou ainda sobre a importância de discutir políticas públicas que se voltem para a produção de conhecimento territorial e formação da juventude. “Não haverá saída para o recomeço da vida das pessoas se não houver direito garantido no território. O governo não pode se eximir da sua responsabilidade”, enfatizou.

Mais: ouça na Rádio UFRJ

Desde o início da pandemia da COVID-19, acompanhamos a circulação das notícias nas favelas pelos jornais locais. E confirmamos, cotidianamente, que esses veículos são referência na produção de informações, graças ao trabalho de jornalistas como Hélio Euclides, do Maré de Notícias, e Michele Silva, do Fala Roça.

No Complexo da Maré e na Rocinha, respectivamente, Hélio e Michele apuram como os moradores convivem com o novo coronavírus e lidam com as dificuldades impostas neste período de isolamento social. Também combatem a desinformação e fiscalizam as ações do poder público. Em reportagem produzida em parceria com a Rádio UFRJ, conversamos com os dois jornalistas e apresentamos, a partir do ponto de vista deles, o cotidiano das favelas. Ouça, clicando aqui!

Comunicação é um direito humano. Foto: Agência Brasil