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Memória

O sistema prisional brasileiro no contexto da pandemia de COVID-19

Artigo da professora Kátia Sento Sé Mello, da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, sobre a situação da população carcerária do país

Por Kátia Sento Sé Mello*

A pandemia provocada pelo novo coronavírus traz à luz o papel fundamental da universidade pública, assim como o papel do Estado na manutenção de políticas públicas e do Sistema Único de Saúde (SUS). Importante, portanto, esclarecer que falo aqui como professora e pesquisadora de uma universidade pública, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordeno, juntamente com a professora Christiane Russomano Freire, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), uma pesquisa de natureza comparativa entre Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul sobre as condições e os processos sociais da aplicação do artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP), que trata do direito à prisão domiciliar das mulheres gestantes, lactantes e mães de crianças até 12 anos de idade. Esse projeto está cadastrado no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, sob a coordenação-geral do professor Michel Misse.

Para falarmos sobre o impacto da COVID-19 no sistema carcerário brasileiro, precisamos esclarecer que, com base nos dados do último Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), o Brasil possui, hoje, cerca de 726 mil pessoas em privação de liberdade, mas as vagas disponíveis somam apenas 436 mil (1). Do total da população carcerária, cerca de 250 mil têm algum tipo de doença. O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de países que mais prendem no mundo, ficando atrás apenas dos EUA e da China. Imaginemos um vulcão prestes a entrar em erupção quando o assunto é encarceramento no momento da pandemia de COVID-19.

A taxa de aprisionamento no Brasil entre os anos 2000 e 2016 foi de 157%, ou seja, em 2000 tínhamos uma população de cerca de 232 mil presos e hoje, 726 mil. Para mostrar o quão perverso é nosso sistema de justiça criminal, a população que potencialmente será mais atingida pela COVID-19 é negra e pobre. Basta ver que é representada por 64% da população prisional em 2016, segundo dados do último Infopen. Isto é, o novo coronavírus tem um poder destruidor no planeta, mas aqueles com menores condições de se proteger do vírus fazem parte da população negra e pobre. 

Condições insalubres potencializam a contaminação

É importante destacar que não há homogeneidade no que se denomina sistema prisional brasileiro, o que, de certa forma, aponta para maneiras distintas de se lidar com a gestão das unidades prisionais. Seja como for, a situação é gravíssima porque, como é do conhecimento de todos, as penitenciárias brasileiras, por oferecerem condições insalubres, potencializam a contaminação e a proliferação de doenças. E o problema não é somente o coronavírus, mas seu potencial de proliferação devido à existência de diversas outras doenças contagiosas que há muito tempo afetam a população carcerária e os servidores responsáveis pela organização e gestão das unidades prisionais. Estima-se que o risco de contágio de tuberculose nos presídios, por exemplo, seja 30 vezes maior do que o risco verificado na população comum. 

Com base no Infopen, a Rede de Observatórios da Segurança destaca que a proporção de presos acima das vagas disponíveis varia em cada estado. Ceará e Pernambuco parecem liderar a superlotação. Ceará tem 173% a mais, Pernambuco, 172%. Rio de Janeiro está com 70% de presos acima das vagas disponíveis. 

Ainda de acordo com esses dados, a Rede de Observatórios da Segurança chama a atenção para a disponibilidade de celas destinadas à observação de pessoas privadas de liberdade que estão doentes:

Rio de Janeiro: 12 celas de 50 unidades; Bahia: 14 de 25 unidades; Ceará: 15 de 36 unidades; Pernambuco: 16 de 76 unidades; São Paulo: 140 de 173 unidades

Vamos lembrar quais são os principais procedimentos para minimizar o risco da rápida proliferação do coronavírus no mundo: em primeiro lugar, evitar aglomerações e contato pessoal; higienização das mãos e das superfícies às quais as pessoas têm acesso; manutenção da ventilação dos ambientes; atendimento imediato daqueles que apresentam os sintomas e o seu isolamento, que, no Rio de Janeiro, se trata do pronto-socorro Hamilton Agostinho, em Bangu, que atende a população carcerária. Então, de um lado, tais orientações gerais que pressupõem um perfil de pessoas com acesso aos bens de proteção e prevenção da disseminação do vírus; do outro, as condições paradoxais em que se encontram os presídios, que favorecem o justo oposto.

As pessoas encarceradas já têm as vidas marcadas pela ausência de políticas de saúde, educação, habitação e emprego, para dizer o mínimo. Como é o ambiente prisional? É insalubre, lotado, sem ventilação, tem problemas advindos da inconstância no fornecimento de água. Em algumas unidades as celas são projetadas para 12 pessoas, mas são ocupadas por 50 ou 60. O atendimento médico é precário e os serviços técnicos de enfermagem, serviço social e psicologia sofrem em virtude de uma organização que não conta com plano de cargos e salários nem formação continuada dos servidores, também sujeitos à precariedade das unidades prisionais. Como podemos ver, as condições são propícias ao desenvolvimento e contágio de doenças dos mais diversos tipos. Ainda que houvesse servidores suficientes para atender as pessoas doentes nas unidades prisionais, de nada adiantaria, porque elas, mesmo depois de atendidas − vejam bem, não quero dizer pessoas tratadas ou cuidadas, mas apenas atendidas −, continuam no mesmo lugar onde desenvolveram as doenças.

A tuberculose, a sarna, o HIV e a sífilis são doenças comuns e não tratadas em muitas unidades prisionais no Brasil. Já sabemos quais são os fatores que contribuem para desenvolvimento e transmissão dessas doenças.

Ausência de profissionais de saúde

No sistema prisional do Rio de Janeiro, a água é um bem intermitente. Até o momento não há previsão de aumento de fornecimento de água para que as pessoas privadas de liberdade possam higienizar as mãos e, muito menos, para lavar o chão, as paredes e os objetos de uso pessoal. Como evitar aglomeração e contato pessoal se os  encarcerados dividem celas superlotadas e mais de uma pessoa compartilha a mesma cama para dormir? Tal quadro é o que tem permitido a transmissão de tuberculose, meningite e, atualmente, a presença de casos de sarampo, especialmente na Penitenciária Ary Franco, conforme identificado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT-RJ) nos presídios. Do mesmo modo, as orientações sobre o atendimento médico qualificado batem de frente com a ausência de profissionais de saúde nas unidades prisionais. Os que existem devem dar conta de um número elevadíssimo de doentes que se encontram no cárcere. Na maioria das vezes, tendo que ser atendidos pelos servidores que atuam no cotidiano das unidades. O que dizer, ainda, da vulnerabilidade desses servidores, submetidos  ao mesmo ambiente das pessoas internas?

No último dia 13/3, o governador do estado do Rio de Janeiro emitiu um decreto que previa a suspensão de todas as visitas em unidades prisionais, mesmo as íntimas e familiares; a suspensão das visitas dos advogados e do deslocamento de presos para suas audiências. No mesmo dia, o Ministério Público pediu ao juiz titular da Vara de Execuções Penais (VEP-RJ) a suspensão das saídas de todos os presos, incluindo aqueles que cumprem regime semiaberto. Dessa forma, não somente a VEP como também o MP do estado não parecem alinhados às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades de vigilância sanitária e de saúde nacionais e internacionais.

Diversas vozes se levantaram contra tal decreto. Além do Conselho Nacional dos Defensores Públicos, outras entidades da sociedade civil apontam para o impacto da disseminação da COVID-19 não somente na população carcerária, mas em toda a sociedade. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e outras entidades em níveis locais e nacional têm alertado para o problema e demandado determinadas medidas de contenção do vírus. A Frente Estadual pelo Desencarceramento, por exemplo, desde o dia 20/3 monitora o funcionamento do sistema prisional durante a pandemia.

O MEPCT-RJ, em 2018, redigiu o relatório Sistema em Colapso: Atenção à Saúde e Política Prisional no Estado do Rio de Janeiro, sobre o tema da saúde nas prisões brasileiras, e já havia alertado para o colapso do sistema prisional. Além disso advertiu que medidas fossem tomadas e embasadas no saber técnico, médico e sanitário. Dessa forma, o MEPCT considera que uma diretriz de desencarceramento é emergencial para a contenção dos danos provocados pela pandemia de COVID-19.

Grupos de risco devem ser transferidos para regime domiciliar

A Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por outro lado, alertaram e demandaram que sejam cumpridas medidas de atendimento à população carcerária neste momento de pandemia. Dessa forma, os defensores públicos pedem que os presos classificados como grupo de risco – idosos, hipertensos, diabéticos, portadores de doenças crônicas, gestantes ou lactantes, entre outros – possam ser transferidos para um regime domiciliar ou que sejam analisadas outras medidas alternativas. É imprescindível que haja álcool em gel 70% nos presídios, além de sabonetes e material de limpeza tanto para as pessoas privadas de liberdade como para os servidores. Devemos lembrar que o Supremo Tribunal Federal, desde 2016, estabeleceu a Súmula Vinculante nº 56, que determina critérios para a antecipação da progressão penal, por exemplo, do regime fechado para o semiaberto. Apesar disso, o mesmo relator dessa súmula, diante da pandemia do coronavírus, não considerou as alternativas penais que havia defendido na ocasião.

A pandemia atual coloca em evidência a tradição escravocrata histórica brasileira e de disputa entre os poderes. Não somente torna explícita a vulnerabilidade de segmentos da população como pobres e negros, como também a disputa política entre as diferentes esferas do poder sobre quem tem o direito de dizer qual medida de proteção deverá ser adotada. Embora tenhamos um regime de Estado Democrático de Direito no qual a Constituição de 1988 é a maior expressão, que garante formalmente princípios republicanos, nossa estrutura jurídica tradicionalmente não assegura a aplicação igualitária de direitos a todos os cidadãos. As decisões a respeito da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para agilizar a soltura de doentes crônicos, idosos com mais de 60 anos, mulheres lactantes ou grávidas, que não cometeram crime com violência, colocando aspas na definição dos crimes sem violência, não são acatadas por todos os juízes em todos os tribunais no Brasil. Determinar que eles analisem caso a caso não resolve o problema.

Grávidas e mães de crianças com até 12 anos têm tido seus direitos negados

O fato é que o chamado sistema prisional ou sistema de justiça criminal não parece um sistema, pois não somente suas diferentes instâncias de poder não conseguem concordar com as medidas necessárias para salvar a vida das pessoas encarceradas, como também não há o intercâmbio entre as diferentes instâncias no percurso que vai da prisão de alguém até a sua alocação em uma unidade. Nesse percurso muitos direitos são violados. Mulheres grávidas ou mães de crianças com até 12 anos de idade têm tido negados seus pedidos da conversão da prisão preventiva para a domiciliar, violando, de certa forma, o que determina o artigo 318 do CPP. Embasadas em valores morais, as justificativas dos magistrados nas sentenças ignoram que muitos atos considerados criminosos não implicam violência − e essas mulheres são lançadas às prisões, mais por questões morais, que incidem sobre as expectativas do papel feminino na nossa sociedade, do que propriamente pelo ato praticado.

Há que se perguntar sobre as possíveis medidas, inclusive jurídicas, que poderiam ser tomadas diante do impacto do coronavírus na população carcerária. Eu diria que, neste momento de urgência, é fundamental seguir os procedimentos aconselhados pela OMS, pelo Ministério da Saúde e por autoridades sanitárias e governos dos estados: aplicar os dispositivos legais que levam ao desencarceramento de pessoas vulneráveis. É urgentíssimo que aqueles com maior vulnerabilidade no sistema prisional tenham a liberdade garantida para serem tratados em casa. No entanto, em longo prazo, toda a política prisional no Brasil e no mundo precisa ser repensada, inclusive a própria noção de crime. No país, observamos que foi ampliado o número de comportamentos  classificados como criminosos, o que contribui largamente para o maior encarceramento da população pobre, jovem e negra.

Seletividade penal


Foto: Acervo pessoal

No Brasil, em particular, que possui uma sociedade forjada na realidade da escravidão, o punitivismo e a violência têm sido os norteadores das decisões políticas dos magistrados e governantes, assim como das instituições de controle da criminalidade e segurança pública. Há cinco séculos, o punitivismo e a violência mostram-se ineficazes. O encarceramento em massa segue a lógica da seletividade penal: joga nas prisões, sobretudo, uma população jovem, negra e pobre, cujas condições de existência já a destituíram do usufruto de bens e riquezas que podem ser produzidos pela sociedade. Temos outras alternativas? Sim, temos.

Precisamos construir um projeto de sociedade que contemple políticas públicas em todos os níveis da vida humana: saúde, educação, habitação, trabalho, assistência e previdência. A pandemia da COVID-19 demonstrou a necessidade premente dessas políticas, além de ser um divisor de águas para repensarmos nosso projeto de civilização. 

E o que dizer da política antidrogas no Brasil? Enquanto houver proibição do consumo e mais punição, nunca romperemos com a cadeia perversa que joga diversos jovens em uma rede de violências entre si e com os agentes da segurança pública. A atual política antidrogas serve para deixar nas cadeias pessoas que, em maior parte, são  jovens, negros e pobres; ou seja, a lei antidrogas é também seletiva. No Rio de Janeiro, os principais motivos que levam as mulheres à prisão são o envolvimento em contextos do tráfico de drogas, seguido por roubo e furto, que representam crimes contra o patrimônio. O que isso significa? Elas não cometeram nenhum crime violento contra a pessoa, cuja máxima expressão é o homicídio. Sendo assim, algumas das medidas para evitar o encarceramento em massa e os sérios problemas advindos da pandemia são: a descriminalização de drogas ilícitas, a despenalização e, mesmo, a extinção de certas condutas das leis penais.

Outras medidas de longo prazo, mas urgentes, são aquelas destinadas ao desarmamento dos conflitos −  não quero dizer a eliminação dos conflitos, já que eles são constitutivos da vida em sociedade. Falo sobre a ampliação de experiências de formas não violentas de administração dos conflitos. Em algumas unidades prisionais no sul do Brasil, a experiência da justiça restaurativa tem promovido um reconhecimento maior da dignidade da pessoa presa. A justiça criminal deve dar lugar a formas de conciliação e reparação mobilizadas pela própria sociedade, assim como ao desenvolvimento de formas terapêuticas para o acolhimento de submetidos ao sofrimento em sua condição existencial e prisional. 

(1) Total da população prisional no país: 726.354. Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, Junho /2017; IBGE, 2017. Dados referentes a dezembro de 2016. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf.

* Kátia Sento Sé Mello é professora do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Pesquisa Sociabilidades Urbanas, Espaço Público e Mediação de Conflitos (GPSEM/CNPq). Pesquisadora associada ao Núcleo Cultura Urbana, Sociabilidade e Identidades Sociais (Nusis/ESS), do e Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu/Ifcs) da UFRJ e do INCT-Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos/UFF. Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).