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Memória

Uma história de som e silêncio

Técnica da UFRJ e escritora, Nuccia de Cicco é a quarta entrevistada do projeto Intelecta


Imagem: Ana Marina Coutinho e Ana Montez 

Nuccia de Cicco é o tipo de pessoa que a sabedoria popular diria que fala pelos cotovelos. Sempre com um sorriso caloroso, a técnica-administrativa e escritora ama falar sobre a vida, sua trajetória acadêmica e artística e, principalmente, sua surdez.

A história de Nuccia na UFRJ começou como a de todo jovem universitário. Ingressou em 2003 no curso de Ciências Biológicas com o sonho de trabalhar com ciência. Em 2007, então, ela viveu uma grande virada: “Fiquei surda por causa de um problema genético e durante um ano eu precisei me acostumar com a ideia de ter perdido a audição”.

Nesse momento, a pesquisadora encontrou apoio em uma das atividades de extensão desenvolvidas no Instituto de Bioquímica Médica (IBqM). O Projeto Surdos oferece atividades como aulas experimentais com estudantes do ensino básico e a criação de um glossário científico na Língua Brasileira de Sinais (Libras). “Surdos oralizados, aqueles que sabem português, têm um acesso melhor às notícias do que os surdos que só falam a língua de sinais. Então o projeto faz esse tipo de inclusão”, afirma.

A técnica começou ainda como monitora e quando passou no concurso para servidora foi direcionada para esse mesmo projeto. Nuccia conta que foi por meio do contato com os surdos no laboratório da UFRJ que conseguiu aceitar a surdez e construir sua carreira na academia. Entrou logo em seguida no mestrado e no doutorado, e almeja ingressar no pós-doutorado ainda este ano. Mesmo sendo a primeira doutora surda na história do IBqM, ela relata que os processos que exigem prova prática, como acontece com os concursos pra docência e pós-doutorado, não são inclusivos.

Entre as dificuldades apontadas, está a construção social da surdez. “Surdo consegue falar, nem todos usam língua de sinais. É um estereótipo que temos que ir limpando aos poucos”, conta. Como Nuccia perdeu a audição no início da vida adulta, já tinha passado pela alfabetização tradicional e por todo o processo de aprendizagem da fala. Assim, além de utilizar Libras, ela fala português, inglês e italiano, faz leitura labial, reconhece o tom de voz das pessoas, é escritora e bailarina, entre outras coisas que descontroem a visão popular que a sociedade tem do surdo.

Construindo outras histórias

Do mesmo jeito que precisou aprender uma nova língua, Nuccia buscou, também, uma nova profissão. Ela encontrou na literatura uma maneira de mostrar a experiência de sair do mundo ouvinte para o mundo surdo e de quais maneiras é possível criar um mundo mais inclusivo. “Isso não é o fim da vida, a gente consegue sobreviver mesmo aos trancos e barrancos.”

Além da biografia Pérolas da minha surdez, ela organizou a ontologia Fantásticos, na qual reuniu uma série de escritores para construir personagens com várias deficiências retratados como princesas, fadas, super-heróis etc. A obra afirma a necessidade de se desmistificar que toda superação significa heroísmo e mostra que pessoas com deficiência não são deficientes. O recém-lançado Cadeados, por sua vez, é um romance que conta a história de uma jovem que fica surda. Segundo a autora, a literatura brasileira não dá espaço para protagonistas com deficiência, relegando a eles papéis de coadjuvantes, quando muito.

Nuccia conta que muita gente ainda se surpreende que ela seja uma pessoa normal, como qualquer outra, o que expressa uma visão discriminadora e limitante. O balé, por exemplo, sempre foi uma parte importante da sua vida, mas, depois de perder a audição, ela precisou criar um novo caminho. “Para eu manter a ideia de ser bailarina e aprender as músicas, tive que estudar os ritmos musicais todos de novo através da vibração.”

Preconceito dobrado

 Mesmo com um currículo impressionante, a escritora afirma que vive o preconceito todos os dias. Enquanto mulher cientista, Nuccia explica que já passou por situações de machismo explícitas, reforçando que o número de mulheres na ciência ainda é muito diminuto. Porém, para ela, o machismo não chega perto do capacitismo (preconceito social contra pessoas com deficiência), tanto na ciência quanto na literatura e na sociedade em geral. “Já deixaram de me chamar pra eventos por causa da surdez, porque não sabem como vão conseguir falar comigo. A surdez traz mais problemas do que ser mulher, mas junta os dois e é uma gracinha”, ironiza.

Veja o vídeo com a técnica-administrativa e escritora Nuccia de Cicco na WebTv da UFRJ.

 

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