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Memória

Mortalidade por AVC é dez vezes maior em Santa Cruz do que na Gávea

“Mortes mais precoces ocorrem em regiões de baixo IDH”, aponta Nelson Souza e Silva, diretor do Instituto do Coração da UFRJ

Reportagem de Iana Faini

Edição e supervisão: Jean Souza

* esta matéria foi atualizada em 28/3, às 18h17, no trecho sobre cor da pele

Com artigos e dissertações de mestrado e doutorado, uma das linhas de pesquisa do Instituto do Coração Edson Saad (Ices/UFRJ) aponta para a preocupante relação entre índices sociais e mortalidade por doenças cardiovasculares no estado do Rio de Janeiro. O professor emérito da UFRJ e diretor do instituto, Nelson Souza e Silva, destaca a importância dos “determinantes sociais das doenças”, conceito difundido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para identificar as condições econômicas e sociais que influenciam a saúde humana.

Ele ressalta que os estudos precisam analisar longos períodos para determinar certos fatores. “Se não olhar as séries históricas, não se vê em que condições as camadas populacionais nasceram e morreram. É preciso olhar as diferenças entre as gerações”, diz.

Com a colaboração de estudantes e docentes, há 14 anos o Instituto do Coração levanta dados importantes sobre a saúde da população do Rio de Janeiro. Há cinco anos, a pesquisadora Regina Helena Alves Fonseca, em sua tese de doutorado, demonstrou a influência de fatores sociais no número de mortes por doenças cerebrovasculares em diferentes bairros do município. Realizado no  Programa de Pós-Graduação em Medicina e pelo Instituto do Coração, o estudo foi desenvolvido em parceria com outras instituições da UFRJ, a Fundação Oswaldo Cruz e Secretarias de Saúde do estado do Rio.

As doenças crônicas representam, proporcionalmente e em números absolutos, a maior causa de morte no mundo, sendo o problema agravado em países em desenvolvimento, seguindo as diferenças de níveis socioeconômicos. Dentro do universo das doenças crônicas, estão as cerebrovasculares, mais comumente chamadas de acidentes vasculares cerebrais (AVC), que levam a óbito e incapacitação para o trabalho. A pesquisa de Regina Fonseca analisou, especificamente, as ocorrências fatais.

Cor da pele

De acordo com Nelson Souza e Silva, a cor da pele era vista como um dos fatores determinantes do adoecimento, de acordo com vários estudos antigos. Entretanto, ele destaca que a pesquisa identifica que os determinantes são basicamente sociais. 

“A cor da pele não deve ser entendida como o fator determinante da doença, mas sim um indicador das piores condições determinadas pelas desigualdades sociais existentes até hoje, ainda como consequência dos mais de 300 anos de escravidão pelos quais, infelizmente, o Brasil passou e que ainda afetam a população afrodescendente”, afirma o diretor do Ices.

Entre as possibilidades levantadas por Regina Fonseca para explicar as diferenças de mortalidade entre bairros, estão o menor acesso a programas de prevenção e socorro pelas populações marginalizadas, a alimentação inadequada, níveis elevados de estresse e acúmulo de situações de privação. Fatores ambientais durante a gestação também geram maior probabilidade de doenças na vida adulta, aponta o estudo.

“A pobreza certamente está associada ao adoecimento”, diz a pesquisadora nas considerações finais da tese. “Nesse sentido, é necessário ter um pensamento menos determinístico e observar que as relações entre as inúmeras variáveis sociais, demográficas, comportamentais, ambientais, genéticas não são lineares ou causais na ocorrência do evento, e sim uma composição de fatores que permitem o surgimento da doença.”

“O pobre morre mais tanto das doenças crônicas como das infecciosas, e mais precocemente do que as pessoas detentoras de maior riqueza”, aponta Souza e Silva.

A cada redução de 0,05 no IDH, há o aumento de 65% no número esperado de óbitos

Outros estudos do Ices mostram que os fatores de risco individuais mais conhecidos representam apenas uma parte do risco de morte por doenças cardiovasculares. Porém, essa foi a primeira pesquisa do instituto a estudar especificamente a cidade do Rio. Fatores como idade, sexo, renda e escolaridade influenciam não apenas na incidência, mas também na probabilidade de risco precoce de óbito.

Ao analisar os dados, chegou-se à conclusão de que a mortalidade por doenças cerebrovasculares se relaciona inversamente com o nível de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). De forma que, a cada redução de 0,05 no índice, ocorre um aumento de 65% no número esperado de óbitos. Além dos números de óbito, a diminuição do IDH também indica a maior precocidade da ocorrência, representando até duas décadas de diferença entre as regiões de maiores e menores IDHs.

 

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Nelson Souza e Silva – foto: Raphael Pizzino – CoordCOM/UFRJ

 

“Educação melhor implica melhores condições de vida e saúde”

Apesar de os trabalhos do Instituto do Coração Edson Saad serem focados em doenças cardíacas, de acordo com o professor Souza e Silva, os números de mortalidade por outras doenças, como câncer e diabetes, também caem conforme o IDH aumenta. Em artigo publicado em 2015, ele e os pesquisadores Gabriel Porto Soares, Carlos Henrique Klein e Glaucia Maria Moraes de Oliveira apontaram que, nas últimas décadas, a queda na mortalidade por doenças do coração nos municípios do estado foi significativa. Analisando dados de 1979 a 2010, eles relacionam o fato à melhoria nas condições socioeconômicas da população.

Mais especificamente, cada elevação de 0,1 ponto no IDH correlacionou-se à redução de 53,5 óbitos por 100 mil habitantes por doenças arteriais coronárias, 30,2 por doenças cardiovasculares e 10,0 por doenças isquêmicas do coração.

O fator “escolaridade”, como um importante determinante nas variações dos índices sociais, é ressaltado por Souza e Silva. “A luta por escolaridade é muito mais ampla do que parece. Educação melhor implica melhores condições de vida e saúde”, diz o pesquisador. “As medidas econômicas têm repercussão sobre a mortalidade, as que levam ao desemprego e à desigualdade social matam pessoas.”

Foram analisadas as certidões de óbitos causados por doenças cardiovasculares no Rio de Janeiro entre 2002 e 2007, dividindo o município em 33 regiões administrativas. A enfermidade foi responsável por cerca de 20% do total de óbitos na cidade nesse período. Segundo a pesquisa, os óbitos ocorrem mais precocemente na Rocinha, Maré, Jacarezinho, Complexo do Alemão e São Cristóvão. Enquanto na Zona Sul encontram-se os bairros nos quais as mortes por doenças cardiovasculares acontecem em idades bem mais avançadas. A diferença entre a idade média de óbito na Rocinha e em Laranjeiras, por exemplo, chega a 20 anos.

Entretanto, regiões com baixo IDH, como as citadas, não lideram o ranking em proporção dos óbitos. O trabalho explica a aparente contradição dos dados pela influência de dois fatores principais: a quantidade de certidões com endereços incorretos e também o fato de essas regiões apresentarem uma população mais jovem, com menor expectativa de vida, causada por taxas de mortalidade infantil e violência mais elevadas em idade precoce, reduzindo, assim, a população que atinge idades acima de 60 anos, faixa em que as doenças cardiovasculares aparecem mais frequentemente.

Dessa forma, viver na Zona Sul da cidade representa maior proteção ao desenvolvimento dessas doenças e menor precocidade de óbito. A diferença em relação à Zona Sul na distribuição do risco está presente para quase todos os outros bairros da cidade. “Os moradores da região de Campo Grande e Santa Cruz apresentam mortalidade por doenças cerebrovasculares dez vezes maior e morrem dez anos mais cedo do que os moradores da Gávea”, denuncia o professor. Enquanto o bairro da Zona Sul possui o IDH mais alto da cidade (0,97), Santa cruz apresenta o mais baixo (0,74) entre as regiões administrativas do Rio de Janeiro.

Escolaridade também apresenta correlação com incidência de doenças

Outra variável estudada foi a formação escolar. A baixa escolaridade representa fator de risco em praticamente todos os bairros do município e, para a população com menor acesso à educação, morar sozinho também é motivo de preocupação. Embora ainda não seja clara a razão de viver sozinho aumentar as chances de óbito, outros estudos do instituto demonstram que a coesão social do indivíduo dentro da comunidade em que vive revela-se um fator de proteção.

O impacto da escolaridade é tanto que a média de óbitos por doenças cerebrovasculares foi até 150% maior em algumas regiões da cidade, para indivíduos com baixa escolaridade, em relação aos com mais de oito anos de estudo. A alta escolaridade implicou proteção para a saúde em quase todas as regiões administrativas.

O acesso dificultado a serviços de saúde, menos conhecimentos de prevenção e dificuldade de comunicação entre médico e paciente são algumas explicações possíveis para entender como a baixa escolaridade contribui para as mortes por doenças cerebrovasculares mesmo quando a comparação é feita entre grupos com fatores de risco clássicos semelhantes, como tabagismo e obesidade. “A baixa escolaridade é certamente um indicador de piores condições gerais de vida”, diz Souza e Silva.

 

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