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Memória

Urbanista critica política habitacional do Estado

De 1940 a 2000, foram construídas no Brasil sete milhões de moradias financiadas pelo governo enquanto 28 milhões de habitações foram fruto da poupança das próprias famílias. Grande parte desse total está localizada em áreas urbanas sem infraestrutura e em favelas. Os domicílios financiados pelo governo são, em sua maioria, conjuntos habitacionais que não fogem a essa realidade de pobreza e abandono. Este foi o quadro apresentado na última sexta-feira, dia 4, pelo arquiteto, urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, Sérgio Magalhães, na palestra “Rio: favela ou bairro?”, que encerrou o evento “Diálogos Cariocas”, no Fórum de Ciência e Cultura, no campus da Praia Vermelha. As próximas edições do encontro ocorrerão nos dias 23 de setembro e 17 de novembro.

Segundo o urbanista, grande parte das residências do país foi erguida com o próprio esforço familiar. No Rio de Janeiro, o quadro não foi diferente, especialmente nas zonas Norte e Oeste da cidade. Magalhães apontou que, desde o final do século XIX, a favela e as ocupações irregulares estão presentes na cidade. Nesse período, teria surgido uma nova concepção de família, constituída pelas figuras do pai, da mãe e dos filhos. Tal estrutura familiar, chamada nuclear, casava com o modelo de idealização da casa própria divulgado pelo governo, principalmente durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, a primeira administração a propor que a responsabilidade pelas moradias seria do Estado.

O urbanista contou que o governo Vargas chegou a criar leis para desestimular o inquilinato, na tentativa de acabar com estruturas urbanas como os cortiços, muito populares no início do século. “’Quem casa quer casa’ e é neste momento que surge a necessidade do grupo familiar de ter um núcleo residencial próprio”, afirmou Magalhães. Com o objetivo de realizar o sonho da casa própria, as famílias começaram a procurar terrenos mais baratos e, por isso, mais distantes do centro urbano e com infraestrutura precária. Segundo o urbanista, a partir desse momento, iniciou-se o modelo de “cidade expansiva”, que seria a causa de muitos problemas sociais que persistem até hoje.

Nesse período, surgem os primeiros conjuntos habitacionais do governo, como o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como Pedregulho de Benfica, a Vila Kennedy, às margens da Avenida Brasil, o conjunto que hoje forma a Cidade de Deus e o Conjunto de Antares, em Santa Cruz. Todos foram resultado da política de remoção de favelas, iniciada no Rio de Janeiro na década de 40 e adotada por governantes como Carlos Lacerda e Negrão de Lima. Segundo Magalhães, esses conjuntos se tornaram locais de exclusão mais forte do que as favelas que os antecederam. Famílias que moravam na antiga favela do Morro do Pasmado, em Botafogo, por exemplo, foram transferidas para habitações populares a 60 quilômetros de distância.

“Este modelo que tem quase 70 anos é autoritário, pois quem decide o que fazer e onde são governos e empreiteiros. Aos pobres cabe morar nesses conjuntos ou, então, como fazem os 80% restantes, financiar a própria casa”, criticou. Segundo ele, iniciativas atuais persistem no mesmo erro. Um exemplo é o programa do Governo Federal “Minha casa, minha vida”, que visa frear o crescimento das favelas, através do reassentamento de famílias.

Ausência do poder público

Segundo o urbanista, um milhão de pessoas mora em favelas no Brasil atualmente, 800 mil em loteamentos irregulares e 500 mil em conjuntos habitacionais do governo que se deterioraram, como o Complexo da Maré. “Assim como as favelas e os loteamentos irregulares, os conjuntos do governo são lugares de extrema escassez de Estado, sem serviços públicos em geral, transporte, iluminação, esgoto e segurança.”

“A favela é um gueto urbano, à medida que está isolada. Mas do ponto de vista étnico, cultural e religioso, não é. Não é possível identificar um morador da favela por razões culturais, étnicas ou religiosas”, defendeu Magalhães. A favela é recorrentemente vista como espaço do crime e violência. No entanto, segundo ele, o crime não é privilégio de uma forma urbana, mas decorrência da falta de regulamentação do Estado.

O urbanista acredita ser possível que as favelas sejam urbanizadas. Para isso, complementa ele, é necessário que o Estado entre nesses espaços marginalizados e construa uma política institucional metropolitana que controle o crescimento desses locais e a organização urbana. “O desafio é transformar uma rede clandestina e ilegal em legal e promissora.”

Após a conferência, participaram do último ciclo de debates do “Diálogos cariocas” Ícaro Moreno Júnior, presidente da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (EMOP), Jailson de Souza e Silva, secretário de Educação de Nova Iguaçu, e o convidado especial Nelson Pereira dos Santos, cineasta e um dos precursores do Cinema Novo. Foram exibidos trechos do filme Rio 40 graus (1955), de autoria de Nelson.