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Moacyr Scliar ministra palestra sobre História da Medicina

 O ano da chegada da família Real portuguesa ao Brasil também marcou a criação das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Como parte dos eventos que comemoram os 200 anos da ocasião histórica, a Faculdade de Medicina da UFRJ promoveu em conjunto com a Associação Brasileira de Educação Médica o “Congresso de Educação Médica Regional RJ/ES”.

Um dos destaques dessa edição é o foco na importância do ensino da história da medicina, assunto tratado na palestra dessa quinta-feira, 19 de junho, por Moacyr Scliar, escritor membro da Academia Brasileira de Letras e médico. “Os estudantes de medicina geralmente não gostam de estudar a história de sua área. Mas esse saber pode proporcionar visões mais amplas sobre o tratamento de saúde”, declarou o estudioso, ao iniciar a sua exposição.

O imortal apresentou imagens de diversas esculturas, pinturas e gravuras que ilustram como as práticas médicas foram se alterando com o tempo. Para ele, as fases dessa história não são sucessivas e excludentes, de forma que até hoje, práticas com características de outros momentos ainda se perpetuam. Muito do que hoje se chama de medicina alternativa, de acordo com o palestrante, faz juz à fase da medicina mágico-religiosa, por exemplo.

Ao apresentar a foto de uma estátua da deusa asteca da fertilidade, Scliar destaca que na época desse povo, o parto corria quase sempre sem assistência e muitas vezes a mulher estava trabalhando e interrompia o que estava fazendo para dar a luz e depois continuava o serviço. “A figura, além de ser um ícone protetor, também mostra a posição que a grávida deve tomar para um melhor seguimento do parto sem assistência, de cócoras. A aparente irracionalidade desses costumes esconde também racionalidades”, apontou, ressaltando o valor da fase mágico-religiosa.

Scliar mostrou também outros exemplos, como a tripanação ritual realizada por feiticeiros como possível cura rudimentar da época para certos males como derrames cerebrais, levantados pelo professor como uma das possíveis principais causas de morte na época. Quando o profissional da saúde simplesmente ignora essa cultura, ele pode acabar causando conflitos. “O maior exemplo desse tipo de engano foi a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro. Uma das causas do conflito foi que os funcionários simplesmente forçavam a aplicação do método, usando inclusive o exército”, explicou.

De Hipócrates a Pasteur

O que marca a transição da medicina mágico-religiosa para a empírica é, em grande parte, a obra de Hipócrates, considerado o pai da medicina. “Embora não se saiba ao certo quanto dos estudos hipocráticos foi realizado por ele ou por seus alunos, a importância do grego é gigantesca. Ele teve a coragem de afirmar serem terrenas doenças que eram consideradas de fonte divina. Por menos, Sócrates fora obrigado a tomar arsênico”, lembrou o palestrante. De acordo com ele, o médico grego também lançou as bases da epidemiologia, ao escrever que é preciso olhar para o ambiente à volta das pessoas para entender as doenças e ao afirmar que esse meio as condiciona.

Ainda assim, os estudos do grego não seguem os ditames da ciência atual. “Hipócrates se baseava em observações empíricas, mas sem realizar pesquisas mais elaboradas”, explicou.

O palestrante também alegou que Idade Média não foi uma era de grandes avanços no campo médico. “Uma das instituições que se iniciou nesse período foi o hospital, mas este ainda era um local onde as pessoas passavam por cuidados religiosos enquanto aguardavam a morte”, continuou.

Quando a tela exibiu uma imagem de um homem trajando longas vestes e uma máscara com um bico que se assemelha ao de uma ave e carregando uma comprida varinha, Scliar esclareceu, “A peste negra matou cerca de um terço da população européia nos tempos medievais. Os médicos andavam pela rua para identificar as pessoas que estavam mortas para serem enterradas e a máscara servia para protegê-los do cheiro que emana dos corpos em decomposição. A vara era para cutucar quem estava jogado pelo chão e verificar se estavam realmente mortos e evitar que enterrassem alguém vivo. Como a Medicina melhorou!”, brincou por fim.

Com o advento da anatomia e da microbiologia, as práticas da saúde foram se aproximando das que conhecemos hoje. A passagem para a medicina científica se desenvolveu também com a criação das primeiras escolas médicas, no final da Idade Média para o início da Era Moderna. O palestrante apontou pontos também importantes, como a invenção do microscópio pelo cortineiro Van Leeuwenholk (embora não tivesse ainda uso médico) e o surgimento da primeira vacina, antes do conhecimento microbiológico. “Isso aconteceu porque, em um surto de varíola, se percebeu que certas pessoas apresentavam uma resistência muito maior à doença. Elas contraíam varíola da vaca e produziam anticorpos. Philippes testou a substância em um menino, em seguida o inoculando com a varíola humana (em um procedimento que seria extremamente repudiado hoje) e comprovou sua hipótese”, nos contou.

Para Scliar, um dos grandes marcos da medicina científica foi o médico francês Louis Pasteur, inventor da pasteurização e um dos maiores disseminadores da idéia de que formas microscópicas de vida eram responsáveis pelas enfermidades.

No Brasil, um dos maiores seguidores de Pasteur fora Oswaldo Cruz. “Ele foi tanto um dos maiores responsáveis pela melhora na saúde pública quanto um tirano que não respeitava a cultura popular. Ele ajudou muito o país ao promover projetos que diminuíram os focos de febre amarela e as populações de ratos urbanos, assim como estruturou partes do sistema de vacinação. Mas o seu autoritarismo e o dos outros sanitaristas foi uma das principais causas para a Revolta da Vacina”, afirmou o professor.

— Dessa quase guerra civil, ficou a lição de que a saúde pública não é só vacina. A história da medicina e as diferentes culturas devem ser levadas em consideração quando se tenta instituir certas práticas. Considero que o ensino da História da Medicina seria uma adição importantíssima que poderia ser aplicada no Brasil —, concluiu Moacyr Scliar.