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Aula inaugural de comunicação discute favela, música e mídia

 Do ébano investido de óleo e suor das peles dos protagonistas de “Cidade dos Homens” aos marginais de “Cidade de Deus”, passando pelo olhar da favela como “câncer urbano” ou lugar da miséria expresso por muitos governantes e jornais, esse espaço  é um dos temas mais abordados na mídia brasileira.

Em uma tentativa de dar a seus alunos a oportunidade de ter contato com um dos participantes mais polêmicos dessa discussão, a Escola de Comunicação da UFRJ (ECO/UFRJ) organizou a aula inaugural “Junto e misturado. A Cultura da Periferia nas Universidades”, ministrada pelo coordenador da Central Única das Favelas (CUFA) cineasta e músico MV Bill (ele não informa seu nome verdadeiro). O evento ocorreu no auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, no Campus da Praia Vermelha da UFRJ, na última sexta-feira dia 14 de março.

A trajetória do artista e agente social
A diretora da ECO, Ivana Bentes, destaca a importância da palestra. “O Bill é parte do grupo de produtores de cultura e mídia recentes que significam uma renovação do que consideramos um discurso político. A CUFA, da qual ele é um dos organizadores, é mais que uma ONG, é um centro de educação informal. O convidado é uma figura midiática que produz mídia tanto quanto está presente nela”, destaca a professora.

— Agora, vou falar um pouco sobre minha trajetória. Mas gostaria de lembrar que não acho que isso deva ser só uma palestra ou debate, mas sim uma mesa em que passo para vocês algum conhecimento, mas também aprendo. Gosto muito da iniciativa de cooperação entre estudantes universitários e as comunidades, já que ambos ganham com isso -, afirma o rapper.

O músico nasceu e cresceu na área da Cidade de Deus, onde viveu o que ele chamou de “infância típica de quem é preto e pobre e nasce em favela”. “Com as dificuldades que passávamos, tive que passar a conciliar estudo e trabalho muito cedo. Minha mãe não teve referências de pessoas que cursaram o ensino superior, por isso ela ficava mais feliz com o dinheiro que eu trazia de quando fazia algum serviço, como vender jornais, do que quando trazia o que era chamado de ‘nota azul’ no boletim. Isso me influenciou a deixar de lado os estudos”, lembra ele.

— A maioria das pessoas que brincaram comigo na minha infância acabaram virando bandidos, morreram, estão presos ou se tornaram o que chamam de cadáver ambulante, sem perspectiva na vida. O que me ajudou a não seguir a mesma trajetória foi o Hip-hop, que na época era a música do conhecimento e da consciência — explica MV Bill.

De acordo com ele, foi o desejo de fazer música seguindo esses conceitos que o levou a buscar formas de se preparar melhor. “Minha sabedoria vem da literatura. Alguns dos livros mais importantes para mim foi ‘negro revoltado’, uma biografia do Malcolm X (líder da consciência negra norte-americana) e um do historiador Darcy Ribeiro sobre Zumbi. Mais do que ilustrar minha música e enriquecer meu vocabulário, esses livros me mostraram que eu poderia ser uma exceção”, declara.

A luta por uma voz
— Comecei a usar a linguagem do rap para expressar o ponto de vista de quem sofre aquela realidade na pele. Compus várias músicas com essa natureza, como a “Soldado do Morro”, que é sobre um bandido em cima de uma laje falando das mazelas do dia a dia e do desejo de viver de uma forma diferente. As pessoas da periferia sempre se identificam com essa música por viverem próximas de alguém que passe por isso – conta o cineasta.

Devido à comoção das pessoas, ele decide produzir um vídeo clipe para a música. “Quis fazer algo diferente, que mostrasse o que acontece na favela olhando de dentro dela. Pelo fato de eu ser reconhecido nesses lugares, já me falavam que eu podia filmar o que quisesse. Mas se só filmasse, eu estaria reproduzindo o formato de um olhar de fora da favela. Eu explicava o que estava fazendo e conversava com as pessoas, só depois começava a gravar”, expõe.

— O que me emocionou não foram só as filmagens. Quando as câmeras estavam desligadas e as armas encostadas na parede, falávamos da vida, futebol, amor, filhos. Caia a máscara de monstro e se via um ser humano por baixo. Queria que aquilo fosse conhecido de todos. Não no clipe porque ele era meu ponto de vista, mas em outra ocasião —, indicou o documentarista. 

O vídeo foi alvo de diversas controvérsias antes mesmo de ser lançado, já que mostrava bandidos de verdade. O rapper exibiu o clipe na Cidade de Deus, e prometeu que se os moradores não gostassem, ele quebraria a fita como ato simbólico e ele não seria divulgado. O vídeo foi aplaudido. “Mas logo no outro dia, liguei a TV e estavam me acusando de fazer apologia ao tráfico. De um vídeo de 11 minutos, foi feito um clipe de 10 segundos que sugeria um ato de apologia a violência, já que estavam presentes diversas armas. Ninguém sacou a positividade no que fiz. Foi uma condenação repleta de racismo e preconceito, se fosse feito por outro rapper de pele clara e de outra classe social, aquilo seria considerado arte”, denuncia.

Sobre o documentário “Falcão – Meninos do Tráfico”, o palestrante falou que uma das suas funções foi dar voz aos traficantes sem passar por uma autoridade, que é sempre quem tem a voz nesses casos. MV Bill também lamentou que 16 dos 17 entrevistados acabaram morrendo. “O filme acabou sendo também sobre a morte”, elaborou.

— Outra coisa importante foi a participação das mães e mulheres dos homens que morreram. Elas deram contribuições importantes para a denúncia pretendida pelo documentário com seus depoimentos. Elas também tiveram a coragem de nos chamar quando seus maridos ou filhos faleceram, porque entendiam que sua atitude poderia evitar que outras pessoas passassem pelo mesmo -, agradece ele.

A CUFA também é uma contribuição importante da qual o documentarista participa. “O trabalho que realizamos lá não se restringe ao hip-hop, mas também passa por aulas de basquete, informática, grafite, de defesa e pela de audiovisual, que ensina jovens que só eram filmados a também ter sua produção nesse sentido”, salienta.

Outro ponto importante levantado pelo coordenador da CUFA foi o racismo. “O Brasil é um país racista. E o pior racismo é o que se encontra dentro da própria favela. Muitas vezes as pessoas estão na mesma situação social e educacional, mas uma é contratada porque é branca e a outra não. Claro que quem tem dinheiro ou fama acaba ficando um pouco imune a isso, mas o racismo ainda é um problema grave”, afirma ele.

— É preciso que o país se reeduque e acredito que estamos dando uma contribuição para isso. Só meus clipes não tinham muita projeção na mídia, por isso também tentamos outras formas de diálogo – concluiu MV Bill.