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O cuidado na formação do indivíduo

 Nos dias 25 e 26 de outubro aconteceu, no Anfiteatro Nobre da Maternidade-Escola da UFRJ, o I Simpósio Internacional de Atenção Integral à Saúde Materno Infantil, organizado por Marcus Renato de Carvalho, pediatra, sanitarista e consultor em amamentação, e Marisa Schargel Maia, psicanalista e pesquisadora na Maternidade-Escola. O evento comemora a conclusão da primeira turma do curso de especialização que deu nome ao encontro, abordando o tema “Por uma Ética do Cuidado”.

Segundo Marcus Renato, o objetivo do simpósio é “promover um encontro científico que permita o debate e o aprofundamento em questões éticas envolvidas com o ato de cuidar e seus desdobramentos na sociedade”, explica o médico.

É possível evitar a formação da marginalidade
O primeiro dia do evento contou com a conferência inaugural de Luiz Eduardo Soares, antropólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), além de secretário municipal da Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção de Violência de Nova Iguaçu e um dos roteiristas do filme “Tropa de Elite”, que causou amplas discussões na sociedade brasileira sobre a violência policial. Soares levanta questões a respeito do processo social que origina a marginalidade, muitas vezes sendo esta a forma que a criança e o adolescente encontram para se tornarem visíveis, para existir.

Os coordenadores do evento sintetizam as medidas apresentadas por Eduardo Soares como forma de prevenir essa marginalização de crianças e adolescentes. “As ações de cidadania devem estar vinculadas a políticas públicas, mas precisam também de singularidade: a arte e a cultura – manifestadas por meio de música, dança, teatro e graffiti, por exemplo – são formas criativas que implicam um maior comprometimento, dando visibilidade a esses jovens, que não vemos ou não queremos ver em nosso dia-a-dia”, enumera Marisa.

Marcus Renato completa: “ Existem também outros meios de transformar essa situação, a partir de políticas de segurança como reprimir a corrupção nos sistemas políticos e policiais e melhorar a distribuição de renda – que não deixa de ser uma forma de violência social, apesar de não justificar os crimes. Outra medida é a melhor estruturação das famílias, que começa com o estímulo ao vinculo mãe-bebê, a manutenção da gravidez na adolescência e a valorização da paternidade, que configuram parte das atitudes que a Maternidade-Escola desenvolve junto à família do bebê”, defende o pediatra.

Cuidado e Subjetivação
No segundo dia do encontro, aconteceu a Mesa I de debates, que abordou o tema “Cuidado e Subjetivação”, mediado por Diana Dadoorian, psicanalista do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, e com a participação de Lulli Milman, psicanalista e uma das coordenadoras do projeto “Casa na Árvore”, desenvolvido como Organização Não-governamental em projeto de extensão da UERJ, e Daniel Kupermann, psicanalista e professor do curso de especialização em Atenção Integral à Saúde Materno Infantil.

Lulli apresenta o trabalho realizado pelo projeto “Casa na Árvore”, realizado desde 2001 em diversas comunidades do Rio de Janeiro, contando com a atuação de 42 psicólogos e oito estagiários de psicologia de diversas universidades. “A Casa da Árvore é um espaço voltado para crianças até 12 anos, que está, atualmente, no Morro do Turano, no Chapéu Mangueira e na Ilha da Conceição, em Niterói. Atua também nas creches Casulo Padre Aleixo, no Morro Azul, Meninos de Luz, no Pavãozinho, e Fazerarte, em Botafogo”, enumera a psicanalista, que aborda em sua apresentação apenas o trabalho desenvolvido nas Casas do Morro Chapéu Mangueira, no Leme, e no Morro do Turano, em Rio Comprido.

A especialista explica que a inspiração para o projeto veio do programa de assistência francês Maison Verte, de Françoise Dolto, que visa à criação de um espaço para crianças pequenas acompanhadas de um responsável, com o objetivo de facilitar a passagem da vida familiar para o mundo social da creche e da escola. “Não há inscrição ou horário marcado. Cada um que chega é recebido por um dos profissionais que registra seu nome próprio em um quadro, junto à porta. Assim, todos os presentes – as crianças, seus responsáveis e os psicólogos – são reconhecidos e identificados pelo seu nome próprio. Cria-se, por estes dispositivos, o que Dolto chamou de transferência ao lugar, um lugar onde mesmo os bebês são recebidos por seus nomes, como sujeitos e pequenos cidadãos”, enfatiza Milman.

Lulli descreve ainda diversas histórias, algumas delas configurando difíceis situações e outras em momentos gratificantes do desenvolvimento desse trabalho nas comunidades. “Optamos por trabalhar em favelas: A proposta é acolher crianças em um lugar que não acolhe ninguém, de onde podemos ser expulsos pelos tiros a qualquer momento. Quando isso acontece, nós saímos cheios de alívio, mas as crianças que vivem ali, ali continuam. Os moradores das favelas cariocas são mistificados, desprezados e temidos, intensamente confundidos e fundidos pelos do asfalto com o poder armado que os domina. Assim, sobre este desconforto, nos instalamos por lá. Dali para frente o caminho que vem sendo percorrido é o da busca de um campo simbólico comum que propicie o acesso a esta dor e que compreenda as formas como o sofrimento se expressa nas crianças que nos freqüentam”, esclarece a psicanalista.

Testemunho, hospitalidade e empatia
Daniel Kupermann, por sua vez, parte da reflexão panorâmica a respeito de quais seriam as figuras do cuidado no cenário contemporâneo, baseando-se em três situações distintas. “A primeira delas parte de Bagdá, baseado em instâncias abordadas no diário escrito pelo diretor da Biblioteca Nacional do Iraque, Saad Eskander, veiculado pela mídia. O material descreve situações como a perda de 60% dos livros da Biblioteca e de 95% dos livros raros, além do drama vivido pelo desaparecimento ou assassinato de seus funcionários. Ainda assim, Eskander insiste em continuar no país, cuidando do que sobrou: ‘Se eu for embora, ganha a violência’, alega. Destaca-se, então, a figura do testemunho, da necessidade de um olhar clínico sobre a situação”, aclara o psicanalista.

Kupermann prossegue sua análise, focando a situação de Budapeste, capital da Hungria. “Durante a Segunda Guerra Mundial, o país foi ocupado por alemães e sua língua local substituído pelo idioma dos dominadores. Essa situação, para quem pensa uma ética do cuidado, conduz à teoria do desamparo original estruturante, por desterritorializar, retirar o sujeito de sua condição original. Isso leva a pensar que todos são desamparados (no que diz respeito ao nascimento de uma criança), pois o sujeito funcional necessariamente estará sujeito ao trauma. Por outro lado, porém, não se trata de um desamparo originário em todos os aspectos porque o ambiente, a família, se prepara para a chegada daquele indivíduo. O que seria traumática, na verdade, é a possibilidade de abandono e falta de hospitalidade”, esclarece o professor.

A terceira etapa de sua explanação aborda o caso brasileiro da morte do menino João Hélio Fernandes, de seis anos, em fevereiro deste ano. “A tragédia abalou o anestesiamento dos sentidos tão presente na sociedade brasileira. Todos os dias morrem crianças vítimas da violência. Mas a brutalidade do fato e a dimensão dada pela mídia causaram grande comoção e empatia pública: isto é, ressonou sensivelmente e provocou uma posição sensível na produção dos sentimentos. Nesse caso, essa postura pode ser notada pelo surgimento de discussões a respeito da diminuição da idade penal, da pena de morte”, explica Kupermann.

Por fim, o palestrante elucida o que determina o anestesiamento da sociedade, que se opõe às condições tidas como pertinentes ao cuidado. “Essa anestesia é a ausência de testemunho, empatia e hospitalidade. É o efeito do abandono, que leva o sujeito a pensar apenas em si próprio, levando à descrença de ordem psicológica nas razões do desamparo”, finaliza Daniel Kupermann.