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Nova visibilidade para atletas protetizados

Apesar de muitas pessoas não saberem, além dos jogos Pan Americanos, a cidade do Rio de Janeiro também se prepara para sediar os Parapan Americanos.

 Apesar de muitas pessoas não saberem, além dos jogos Pan Americanos, a cidade do Rio de Janeiro também se prepara para sediar os Parapan Americanos. A competição ocorre entre 12 e 19 de agosto e envolve 1300 atletas com necessidades especiais, que disputarão dez modalidades esportivas. Muitos desses competidores são portadores de próteses mecânicas, que possibilitam melhor participação na competição.

Pesquisas em torno de próteses para atletas vêm sendo desenvolvidas em ritmo acelerado e novos materiais, mais resistentes, leves e flexíveis, vêm sendo utilizados em sua confecção. Esse constante avanço torna o desempenho de atletas com prótese cada vez melhor, mas ao mesmo tempo suscita um debate: é injusto um atleta protetizado competir com outros, também portadores de necessidades especiais, que não usam prótese? Quanto a prótese influencia e otimiza a performance e a potencialidade de movimento de um atleta e quanto ela pode acentuar o abismo existente entre eles?

Para desenvolver o tema, o Olhar Vital convidou dois especialistas no assunto. O professor Jaider de Oliveira Freitas, pesquisador da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD – UFRJ) e a professora Ieda Tucherman, cuja linha de pesquisa engloba Corpo e Novas Tecnologias, da Escola de Comunicação (ECO – UFRJ).

Jaider de Oliveira Freitas

 

Ieda Tucherman

Professor de Natação da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da UFRJ   Professora da Escola de Comunicação e pesquisadora em Corpo e Novas Tecnologias

“Basicamente a partir da década de 70 é que começou a implementar-se mais tecnologia para auxiliar o esporte. Até então isso era feito mais empiricamente e até de forma amadora. A partir da década de 70 houve uma preocupação maior nesse sentido com intuito de obter resultados mais expressivos, avançando na parte mecânica, com auxílio da informática, da nanotecnologia, que é uma das áreas que mais evolui e favorece o esporte, trazendo, cada vez mais, equipamentos que complementam o atleta, estendendo suas ações. 

Houve um caso clássico, na Olimpíada de Roma, onde o etíope Abebe Bikila ganhou a competição correndo descalço, em 1960. Na época isso foi um fenômeno e ele passou a ser um modelo. Mas a partir de então se observou que se ele foi capaz de obter tal resultado descalço, melhoraria ainda mais seus resultados se utilizasse um calçado adequado e, mais ainda, seria possível preservá-lo para uma maior longevidade dentro do esporte. Hoje o que podemos ver é um número bastante expressivo de diferentes tipos de calçados adaptados para asfalto, pistas, grama, terra, dentre outros.

Com a natação, que é a minha área, acontece o mesmo. No início o que tínhamos como tecnologia era uma indicação fisiológica para que os atletas depilassem o corpo para evitar resistência dentro da água, aumentando a sensibilidade, já que a natação é um esporte de coordenação motora e isso foi evoluindo. Surgiram novos tipos de maiô e de sunga, que colavam ao corpo e as pesquisas acabaram comprovando que não era o tipo de material que fazia diferença, mas a aderência que esse material proporcionava. Hoje temos um material, conhecido no meio aquático como ‘pele de tubarão’, que se adequa ao corpo humano facilitando o nado. Mas ainda não se despreza totalmente a característica de cada nadador, já que nem todo competidor se adapta a esse tipo de material, então uns fazem uso de bermudas, outros de jaquetas, outros utilizam no corpo inteiro.

Quando o corredor ganhou a olimpíada correndo descalço, ele se tornou um modelo e as pessoas objetivavam ter a velocidade dele. Hoje é possível que esse foco se altere um pouco e as pessoas objetivem mais ter acesso a todos os aparatos tecnológicos que permeiam o esporte e que proporcionam melhor rendimento. Isso acontece principalmente quando o esporte, mais especificamente o atletismo, sai das pistas, entra no laboratório e começa a determinar os limites do ser humano com o auxílio de inúmeros exames sangüíneos, com a união à nutrição, que vai determinar a alimentação adequada para cada tipo de prática e para cada segmentação dentro de uma mesma modalidade esportiva.

No caso dos para-atletas, é confeccionado um material específico para que possam praticar determinadas modalidades, com resultados acima do que seria possível sem tal tecnologia. Acredito que dentro do uso da tecnologia para esses atletas existam inúmeras variáveis, como o interesse prévio pelo esporte e a potencialidade que esse atleta tenha. O que acontece nessa área é desinformação e preconceito com relação ao deficiente. O importante é discutir e criar novas situações onde o indivíduo possa compensar a deficiência e, através de movimentos adaptados, superar as dificuldade e as limitações.

Entre os atletas deficientes e os atletas deficientes que têm auxílio tecnológico, existe, obviamente, uma diferença em competições e desempenho, mas isso pode ser sanado se essa tecnologia for aberta a todos aqueles que almejarem. O que não pode é um patrocinador ou uma equipe específica receber apoio diferente de outras. O apoio deve ser ao evento e não a cada atleta individualmente, selecionando uns e preterindo outros. Não só no caso do deficiente, mas o próprio esporte de um modo geral, como no caso da natação, que passou a utilizar a ‘pele de tubarão’, que era uma roupa caríssima. Ela só pode ser aprovada como uma peça de utilização em competições se todos pudessem ter acesso.

Eu vejo por esse lado, se todos tiverem acesso à tecnologia para facilitar e aumentar o rendimento do deficiente é positivo inclusive por proporcionar uma nova sensação, uma nova experiência. Algumas coisas precisam ainda ser estudadas e analisadas, porque se criarmos um modelo de pernas, por exemplo, que supere a capacidade humana, eu já não acho positivo, acredito que todo esse processo precisa ter limite.

Eu acredito que toda tecnologia possa ser usada para o bem e para o mal. O importante é oferecer suporte a todos, sem visar somente os competidores de ponta, mas aqueles que ainda estão caminhando na área do esporte. Só assim o uso da tecnologia pode ser justificado, somente quando ele é democratizado”.  

 

“A possibilidade da implantação de próteses traz novas formas de investir e de complementar tecnologicamente, preservando os movimentos e atingindo uma aparência quase que perfeita, o que antes era definitivo: a perda de uma perna ou um braço. Mais ainda: quando um pesquisador norte-americano diz à mídia que se o campeão de atletismo Carl Lewis perdesse as pernas, ele o faria correr mais rápido ainda, ele quer enfatizar, na verdade, que o corpo humano natural é limitado, se comparado às possibilidades que as próteses oferecem. Começa-se a apresentar, hoje, a idéia de que a prótese não serve para cobrir ou tamponar uma falta, mas sim para estimular, para superar os limites do que é natural.

Os esportes são espécie de prova visual da competência e performance dessa nova tecnologia. Não se vê ninguém exaltando um deficiente por ter elaborado um projeto de biofísica, mas sim porque ganhou uma competição esportiva. É claro, pois o esporte exige e depende muito mais do corpo.

Aimee Mullins é uma atleta deficiente que eu uso como caso-exemplo. Tendo nascido com uma deficiência física – sem os ossos dos dois calcanhares, que comprometeriam seu crescimento – ela amputou ambas as pernas até a altura dos joelhos, quando tinha apenas um ano de idade. A princípio, isso lhe reservaria um destino horroroso. Porém, ela foi ‘adotada’ por três departamentos diferentes do Massachussets Institute of Technology, o MIT – biomecânica, biocerâmica e neurociência – do qual se tornou um produto, um case study, que dá visibilidade e prestígio às pesquisas do instituto. O projeto consiste em fazer dela uma atleta e ao mesmo tempo uma mulher, cuja estética seja tão ou mais perfeita que o natural. Em 1998, ela possuía um par de pernas em forma de gancho, com o qual ela corre curtas distâncias.

Nessas corridas, o tempo de Aimee era apenas centésimos maior que da grande recordista olímpica da época. Portanto, era a primeira vez que uma perna protetizada tinha movimento natural do joelho e, após correções estéticas, permitia usar salto alto sem desequilíbrio. Em 2002, Aimee, que virara triatleta, já possuía pares de próteses para nadar e andar de bicicleta, com curvas ergonômicas de joelho e tornozelo específicas.

Certamente Aimee pode ser preparada para ficar mais rápida, mais forte e mais potente do que um corpo natural. Suas próteses não sentirão cãibra, mas exigem dela esforço e treinamento muito intensos para sustentação do material, ainda que leve. Ela me chama atenção quando diz o seguinte: ‘se eu tivesse nascido sem esse problema eu seria uma moca comum do meio-oeste americano, sem nenhuma graça. Por que eu sou como eu sou? Tive a sorte de nascer assim’.

Não tenho a menor dúvida de que uma democratização das próteses seria justa. Na minha opinião, contudo, é preciso democratizar a cidade para os deficientes: o ensino em braile, os cursos universitários, o ingresso em empresas, a capacitação profissional. Até mesmo a instalação de rampas de acesso é escassa – durante os períodos de competições esportivas, muito se fala nos deficientes, mas as medidas concretas que beneficiariam esse grupo não são vistas e a cidade se mantém muito pouco acolhedora para ele. O esporte, traduzido nos jogos Parapan-americanos e nos jogos Paraolímpicos, recebe muito mais atenção da mídia e é encarado por ela como espetáculo, mas não é tudo. A prótese é uma dessas necessidades, mas a integração vai além. Afinal, o que motiva alguém a entrar numa competição sabendo que as chances são menores ou ínfimas?

A transmissão por TV das Paraolimpíadas, que começou há pouco tempo, é um auto-elogio das tecnologias. O investimento de comunicação que é feito nos jogos ou eventos ligados a portadores de necessidades especiais mostra quanto as tecnologias são benéficas e ajudam as pessoas a recuperar certos tipos de movimento e de possibilidades que eles não teriam antes. Trata-se de uma espécie de festa da tecnologia.

Hoje o politicamente correto não permite, mas sim obriga que todos aqueles que sejam portadores de alguma deficiência tenham um grau de atenção e visibilidade maior. Este movimento, apesar de caricato politicamente, não deixa de ser vantajoso no aspecto social, porque cria uma nova expectativa em relação aos deficientes que passam a ser enxergados como portadores de alguma complicação setorial, mas que isso não impede que aquela pessoa seja capaz de fazer coisas".