Categorias
Memória

Falsa crise da Previdência

Através de sua tese de doutorado, a professora Denise Gentil, do Instituto de Economia da UFRJ, contestou a tão alarmada crise da Previdência social, cuja existência era, até então, considerada indiscutível por muitos economistas e intelectuais de todo o Brasil. Sua pesquisa, ainda em andamento, pretende provar que a Previdência Social não só é financeiramente sustentável, como apresenta um superávit de R$ 8,2 bilhões.

agencia2327T.gifA crise da Previdência, supostamente resultante de um processo histórico de falência, envolvendo envelhecimento da população, baixa taxa de natalidade, elevação do salário mínimo e aposentadoria precoce – dentre outros fatores – acaba de ser desmistificada pela professora Denise Gentil, do Instituto de Economia da UFRJ, como sendo nada mais que um meio de manipulação estatística do governo federal em prol de interesses econômicos que nada têm a ver com seguridade social.

Em sua tese de doutorado, Denise mostra que os próprios dados oficiais divulgados no site do Ministério da Previdência Social provam uma considerável distorção entre o que é divulgado à população e o que realmente pode ser constatado por especialistas em relação ao financiamento previdenciário. “Existem interesses econômicos poderosos empenhados em propagar a idéia de que há um déficit na Previdência que, concretamente, não existe. E não sou só eu quem diz isso, a maior parte das pessoas que defendem a manutenção de uma Previdência pública comprovam facilmente que há distorções”, afirma a professora.

A discrepância está na forma de calcular o financiamento da Previdência. Segundo Denise, a somatória de recursos apontada como “saldo previdenciário” não inclui todas as receitas que contribuem para a totalidade do financiamento: “O saldo previdenciário é apresentado como negativo, pois levanta apenas as receitas de contribuição ao INSS do empregador e dos trabalhadores. O verdadeiro resultado final da Previdência social envolve receitas que não foram consideradas, como as de CPMF, CSLL e COFINS. Se calculadas todas as fontes de financiamento, percebe-se que há um saldo positivo de R$ 8,2 bilhões na Previdência”.

Em sua tese, a professora mostra uma relação entre a existência desse saldo positivo e o seu uso pela política econômica neoliberal de manutenção de superávits primários, adotada pelas correntes ortodoxas de gestão que ocupam o Banco Central. “Recursos da Previdência estão sendo retirados para serem aplicados no orçamento da União, que está legalmente autorizada a retirar 20% dos impostos e das contribuições da seguridade social para aplicar livremente em qualquer tipo de despesas. Não é difícil perceber que esse discurso de falência faz parte de uma retórica que pretende destinar uma fatia cada vez maior do orçamento público para fora da seguridade social”.

Todos os grandes proprietários de títulos públicos do governo seriam os beneficiários diretos desse falso déficit artificial, favorecidos pela política de juros altos e por sua grande influência no Banco Central. O processo de execração da Previdência pública faria parte do interesse desse grupo em privatizá-la, liberando recursos públicos que hoje estão vinculados a gastos sociais. Com uma Previdência privatizada, todos os trabalhadores rurais e os cerca de 40 milhões de trabalhadores informais seriam excluídos, em um processo que a professora classificou como uma verdadeira “luta de classes”.

Mesmo tendo o nível de renda da classe trabalhadora caído nos últimos anos, as receitas da Previdência não se mostram deficitárias, segundo os cálculos de Denise: “Pode ser que em outros países do mundo seja, por terem apenas como base o desconto na folha de pagamento. Mas no Brasil não é, devido à diversificação do financiamento da Previdência. O lucro e o faturamento são seus maiores financiadores. E a idéia de que há um déficit é tão massacrante na mídia, que aqueles que defendem uma reforma na Previdência propõem uma reforma baseada no desmonte de direitos. A dívida do governo com a classe trabalhadora foi esquecida”.

Leia abaixo a entrevista com Denise Gentil:

Na sua opinião, você acredita que há má fé por parte do governo federal na divulgação dos dados de arrecadação da Previdência?

Denise Gentil – Existem interesses econômicos poderosos empenhados em propagar a idéia de que há um déficit na Previdência que, concretamente, não existe. E não sou só eu quem digo isso, a maior parte das pessoas que defendem a manutenção de uma Previdência pública comprovam facilmente, através dos próprios dados oficiais disponibilizados pelo site do Ministério da Previdência, que há distorções. Nele, é possível encontrar dados de fluxo de caixa do INSS, com duas informações cruciais: o saldo previdenciário e o saldo operacional do INSS. Se você observar o saldo previdenciário, ele de fato é negativo, pois seu cálculo levanta apenas as receitas de contribuição ao INSS do empregador e dos trabalhadores. No entanto não é o resultado final da Previdência Social, é apenas a receita parcial. As receitas que faltam, como as de CPMF, CSLL e COFINS, são receitas de grande porte e, mesmo assim, não aparecem no cálculo. Se calculadas todas as fontes de financiamento, percebe-se que há um superávit de R$ 8,2 bilhões na Previdência. Portanto, isso levanta uma questão: se não há um déficit, quais são os interesses do governo em propagar a idéia de que há um déficit?

As estatísticas comprovam que o governo tem feito uma política extremamente restritiva de manutenção de superávits primários gigantescos. Esses superávits primários implicam na retirada de recursos da Previdência para serem aplicadas no orçamento da União.

Essa retirada é legal?

A partir do Plano Real, houve o recurso da Desvinculação das Receitas da União, chamada na época de Fundo de Estabilização Fiscal, através do qual o governo foi autorizado a retirar 20% dos impostos e das contribuições da seguridade social pra aplicar livremente em qualquer tipo de despesas. Ou seja, houve a desvinculação dos recursos direcionados aos gastos da Previdência para gastos com outros fins. É uma desconstrução do real sentido da seguridade social, e a justificativa para isso era, na época e até hoje, que o equilíbrio orçamentário é mais importante e dele depende o controle do processo inflacionário. Não é difícil perceber que esse discurso de falência faz parte de uma retórica que pretende destinar uma fatia cada vez maior do orçamento público para fora da seguridade social. Quem tem mantido o superávit primário é a seguridade social, pois há uma transferência óbvia de recursos de um para o outro.

Com que finalidade foi estabelecida, com a Constituição de 1988, a diversidade da base de financiamento da Previdência?

A Constituição de 1988 teve uma importância inigualável para a Previdência, pois criou um sistema de seguridade social, muito mais amplo e capaz de amparar inclusive trabalhadores rurais, que não contribuem significativamente para a Previdência. As pessoas passaram a ter direito a esse serviço de acordo com sua necessidade, e a contribuir de acordo com suas possibilidades. A Previdência foi desvinculada da noção de seguro, cujo sistema excludente garante assistência apenas àqueles que são capazes arcar com altos custos. Foi um contrato social com o Estado. Mesmo assim, o sistema continuou sendo excludente, obviamente, já que favorece apenas a quem possui carteira assinada e contribui com os impostos.

Devido às proporções do sistema, percebeu-se que não era possível construir um sistema como esse financiado unicamente na folha de salários. Todos os economistas e intelectuais que participaram da Constituição de 88 claramente já tinham essa visão, portanto fizeram uma diversificação do financiamento desse sistema, criando outros financiamentos da receita. A partir do momento em que se percebeu que a Previdência havia se tornando uma grande fonte de renda, houve o interesse de se destinar parte dele a outros fins.

Mais na frente, em 2000, veio a Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo nome parece ser uma ironia se consideradas algumas de suas diretrizes. Ela criou o Fundo de Previdência, cuja receita é baseada unicamente na contribuição ao INSS dos trabalhadores e empregadores. Isso isolou as outras formas de financiamento, gerando um déficit artificial.

Quem são os favorecidos pelo déficit artificial?

Todos os grandes proprietários de títulos públicos do governo. São eles que se beneficiam da política de juros altos, e possuem grande influência no Banco Central. É um grupo que pressiona por uma política econômica restritiva. O processo de execração da Previdência pública faz parte do interesse desse grupo em privatizá-la. E com uma Previdência privatizada, todos os trabalhadores rurais e os cerca de 40 milhões de trabalhadores informais seriam excluídos deixados de lado. É uma luta de classes.

Essa manipulação dos dados oficiais pode ser considerada fraude?

Não, pois eles têm amparo legal para isso, através da Lei de Responsabilidade Fiscal. A concepção de que só pertence à Previdência a contribuição das folhas de pagamento foi consolidada ao longo dos anos 90, portanto não é fraude falar isso. No entanto, pela Constituição de 88, o artigo 68 da Lei de Responsabilidade Fiscal, referente a essa questão, não possui sustentação nenhuma. Esse conceito de déficit da Previdência é, portanto, inconstitucional, uma afronta à Constituição.

O déficit previdenciário do mundo ocidental é resultado da política restritiva adotada de maneira hegemônica pelos países do grupo. A partir do momento em que os países passarem a valorizar a geração de empregos e o estímulo à produção, esse déficit desaparecerá. E os economistas sabem disso, sabem que essa política de desmantelamento do Estado promovida pelo superávit primário é uma política recessiva. Basta ver a queda do PIB registrada recentemente no país.

Por todos esses motivos, a política previdenciária no Brasil tinha tudo para ser deficitária. Mas não é. Embora o nível de renda da classe trabalhadora tenha caído, há uma fonte poderosa de financiamento da Previdência, que é o lucro, o faturamento. As receitas da Previdência estão crescendo, e não são deficitárias. Pode ser que em outros países do mundo seja, por terem apenas como base o desconto na folha de pagamento. Mas no Brasil não é, devido à diversificação do financiamento da Previdência. E a idéia de que há um déficit é tão massacrante na mídia, que aqueles que defendem uma reforma na Previdência propõem uma reforma baseada no desmonte de direitos.

Somente um processo democrático consistente e sólido poderia resgatar o conceito constitucional da seguridade social e evitar o desmantelamento da Previdência Social. No momento, a dívida social do governo com a classe trabalhadora foi esquecida. Calculei um superávit de R$ 8,2 bilhões na Previdência. Onde foi parar esse dinheiro? É isso que pretendo descobrir.