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Memória

Reforma agrária na Praia Vermelha

Cerca de 200 pessoas lotaram o Auditório Reitor Hélio Fraga, no prédio do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) no Campus da Praia Vermelha da UFRJ para assistir a uma verdadeira aula de cidadania e coragem. Mais do que buscar alternativas para o combate aos crimes no campo e à impunidade que impera sobre eles, o debate promovido pelo Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo, do CFCH/UFRJ, “Reforma Agrária: Conflitos no campo e vidas ameaçadas”.

agencia1838T.jpgCerca de 200 pessoas lotaram o Auditório Reitor Hélio Fraga, no prédio do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) no Campus da Praia Vermelha da UFRJ para assistir a uma verdadeira aula de cidadania e coragem. Mais do que buscar alternativas para o combate aos crimes no campo e à impunidade que impera sobre eles, o debate promovido pelo GPTC (Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo), do CFCH/UFRJ, “Reforma Agrária: Conflitos no campo e vidas ameaçadas”, trouxe para a cidade e para a vida acadêmica questões que há muito afligem os trabalhadores da área rural do Brasil. Num pólo da mesa, a Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, Maria Joel Dias da Costa, viúva do sindicalista José Dutra da Costa, o Dezinho, assassinado em 2000; do outro, o Frade francês Henri des Roziers, advogado e líder da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Na mediação, ao centro, o Padre Ricardo Rezende, Antropólogo, membro do GPTC. Num debate onde o tema principal era a Reforma Agrária, o trabalho escravo, a impunidade dos crimes cometidos contra sindicalistas, principalmente da região do sul do Pará e a origem dos conflitos de terra no Brasil, serviram como base para uma noite de emoção e esperança.
A Vice-Reitora Silvia Vargas abriu o debate, saudando o público presente e parabenizando a iniciativa. Logo depois, foi a vez da Decana do CFCH, Profª Suely Souza, que exaltou o trabalho do GPTC e as aulas sobre o MST (Movimento do Trabalhadores Rurais Sem-Terra) ministradas pelos cursos da UFRJ. Antes de passar a palavra aos dois grandes convidados da noite, Maria Joel e Frei Henri, o fotógrafo João Roberto Ripper fez uma rápida palestra tendo como base uma exposição de fotos tiradas na área de Rondon do Pará. Segundo ele, o conflito de terra na região tem que ser pensado sempre ao lado de outras três atividades conexas: carvoaria, trabalho escravo e garimpo. As fotografias de Ripper, principalmente as que mostravam crianças em situações de miséria e degradação, causaram grande comoção no público, na sua maioria composto por estudantes universitários.
Depois de uma breve introdução de Ricardo Rezende, Maria Joel, ou dona Joelma, como é conhecida, iniciou um depoimento que não obedecia a nenhuma folha de papel, mas sim ao seu coração. Durante quase uma hora, a Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, uma das áreas mais conflituosas do país, segurou a emoção para falar de sua história, da morte de seu marido e das freqüentes ameaças que recebe no exercício de seu trabalho. Segundo dados do próprio Ricardo Rezende, a vida da sindicalista valia R$60 mil. Orgulhosa em falar para uma platéia repleta “de pessoas de Universidade”, “com diploma”, Maria Joel afirmou que sua vida é guiada pela luta contra a impunidade. Depois de contar em detalhes a emboscada que vitimou o sindicalista Dezinho, em novembro de 2000, dona Joelma destacou a força que encontrou para seguir o trabalho iniciado por seu marido, ainda na década de 90 e que no ano passado culminou com o início do assentamento de mil famílias na região. Ciente do quão incomoda os fazendeiros do local, disse não ter medo das ameaças que sofre. Ao final de seu discurso, a sindicalista exigiu justiça e sugeriu a união dar regiões do Brasil na luta contra seus problemas, citando o crime organizado no Rio, tendo como pano de fundo a Chacina na Baixada Fluminense no final do mês passado.
Após ser apresentado pelo mediador do debate, o Frei Henri des Roziers começou o que foi uma verdadeira aula de história do Brasil, ao falar da origem dos conflitos pela terra no país. Com forte sotaque, o religioso se disse animado pela presença maciça de jovens na platéia. Na região de Xinguará – sul do Pará – desde 1991, Frei Henri versou sobre os episódios da luta rural brasileira, desde seu início, ainda na Ditadura, até a recente morte da missionária norte-americana, Dorothy Stang. Além disso, o Frei destacou a força de coalizão dos trabalhadores, apesar da pouca ajuda do Governo, dizendo que “dá prazer defender a causa de uma mulher como Maria Joel”. Sempre citando fontes da CPT, o padre falou também das injustiças cometidas em outras praças, como o Rio, dizendo que “falta uma reflexão sobre as leis” para o fim da impunidade. Sobre a proteção dada pelo Ministério da Justiça depois da informação de que sua vida valeria R$100 mil, o franciscano fez pouco dizendo não temer as ameaças que recebe. Ao final de sua palestra, Frei Henri falou das principais causas para os conflitos de terra no Pará, destacando a incapacidade das forças jurídicas em contê-las e, principalmente, o modelo de ocupação da Amazônia.

“Na sociedade atual a luta pela terra não tem solução”, diz Frei Henri

Sabatinados pelo público, os convidados da noite falaram de temas delicados envolvendo a reforma agrária. Questionada sobre desvios de verbas no MST e sobre algumas ocupações de terra produtivas noticiadas na TV, Maria Joel criticou o desconhecimento da classe acadêmica sobre o tema, pois a dinâmica de funcionamento do Movimento e do Sindicato de Rondon do Pará são distintas. Segundo ela, somente uma pessoa do próprio MST poderia falar sobre o assunto. Já a respeito dos recursos para a Reforma, a sindicalista disse ser importante a agregação dessas verbas aos assentamentos, caso contrário de nada adiantaria. “Em Rondon do Pará existem essas verbas, mas há lentidão do INCRA nos assentamentos”, afirmou. Já Frei Henri não quis tomar partido da afirmação de que somente numa sociedade socialista seria possível uma reforma agrária; apenas disse ser impossível ela acontecer nos moldes da sociedade atual.
No final do debate, a decana Suely Souza leu algumas mensagens de grupos e pessoas presentes no evento, como o Tortura Nunca Mais, o INCRA, o TRT e até Procuradores da República. Uma professora da UFRJ sugeriu um debate sobre a Chacina da Baixada Fluminense no que foi aplaudida pelos presentes. Durante todo o debate, uma lista de assinaturas foi passada na platéia pedindo a federalização dos crimes no campo. Encerrando o evento, foi feita uma performance teatral de membros do MST e da Via Campesina, com a leitura de uma poesia que exaltava grandes líderes sociais no Brasil, como Chico Mendes, Zumbi dos Palmares e Irmã Dorothy, além, é claro, de Maria Joel e Frei Henri. Um integrante do MST divulgou, ao final dessa apresentação, que está sendo organizada para a próxima semana uma marcha reunindo 70 mil trabalhadores que sairão de Goiânia para Brasília pedindo pela reforma agrária.
Na noite do dia 6 de abril, às 18 horas, Frei Henri e Maria Joel receberam no Plenário Barbosa Lima Sobrinho, no Palácio Tiradentes, os títulos de cidadãos do estado do Rio de Janeiro, numa iniciativa do Deputado Alessandro Molon, do PT.

Terra de muitos conflitos

A região de Rondon do Pará é uma das zonas mais nevrálgicas no mapa da luta de terras no Brasil. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, desde 1997, 27 lideranças foram assassinadas na região e foram anotados 638 conflitos. Atualmente, 60 pessoas estão sendo ameaçadas de morte no local, entre sindicalistas, ambientalistas e ativistas de entidades de defesa dos trabalhadores rurais. O assassinato de José de Ribamar Pereira Nunes, tesoureiro do Sindicato dos trabalhadores rurais de Rondon do Pará, com um tiro na nuca disparado por um homem numa motocicleta, deixou o clima ainda mais instável na região.
Maria Joel, a dona Joelma

“Pegaram meu marido pelo seu ponto fraco: a solidariedade”

Eu estava em casa quando recebi a visita de um rapaz dizendo passar por dificuldades. O Dezinho estava trabalhando e mandei chamá-lo. O clima era sempre de tensão e alerta pelas ameaças que recebia, mas meu marido nunca hesitaria em ajudar um necessitado e na hora ele veio. O jovem parecia mesmo muito infeliz e tive muita pena dele. Ele estava comendo um lanche que ofereci quando Dezinho chegou. Parece que foi ontem. Os dois foram conversar fora de casa e foi aí que ouvi os disparos. Na hora meu coração me disse que haviam matado meu marido. Ainda consegui vê-lo lutando com seu algoz, mesmo com três tiros no peito. Os dois caíram numa vala próxima a nossa residência. Tiraram meu marido morto e um vizinho prendeu o assassino. Queriam matá-lo, mas não deixei. Ele era o caminho pra se chegar no mandante. Dias depois mataram esse vizinho e ano passado foi a vez do José Ribamar (Tesoureiro do sindicato). Tudo isso me dá muita força pra superar as ameaças que recebo e continuar o trabalho do Dezinho. É uma forma de fazer justiça por sua morte.