No dia 28 de junho, é celebrado o Dia do Orgulho LGBTQIAPN+. Cada letra da sigla representa pessoas dissidentes no âmbito de gênero e/ou sexualidade, como lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais, pansexuais, não binárias e outras que não se encaixem necessariamente em nenhuma das definições anteriores. Bem pouco difundida socialmente é a palavra intersexo, que, cunhada em 1917 pelo geneticista estadunidense Richard Goldschmid, refere-se a pessoas que nascem com características sexuais atípicas e não podem ser definidas automaticamente nem como do gênero feminino, nem do masculino.
Apesar da origem antiga do termo, somente no final da década de 1990 ele foi adotado pelos movimentos sociais e de direitos humanos que defendiam e reforçavam a diversidade do grupo. Isso porque o nome intersexo é um guarda-chuva sob o qual é possível agrupar várias pessoas, tanto aquelas que apresentam ambas as genitálias ditas masculinas e femininas, simultaneamente, quanto as que não se encaixam em outros padrões, sejam eles cromossômicos ou hormonais. Por muito tempo essas pessoas eram mencionadas como hermafroditas, mas essa palavra não é mais utilizada por ser considerada pejorativa.
Diante de inúmeros casos de cirurgias de “adequação” realizadas arbitrariamente em bebês e crianças e da imposição do uso de hormônios a partir da escolha de um gênero, ativistas começaram a se posicionar contra a mutilação de corpos que ainda não têm a possibilidade de escolher seus destinos. Esse é o caso do cientista social Amiel Vieira, que desenvolveu sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS) a partir de sua perspectiva pessoal enquanto pessoa intersexo.
Uma pesquisa autoetnográfica
Amiel nasceu com o que é chamado de genitália atípica. Sem saber do que se tratava, os pais de Amiel foram induzidos pelos médicos responsáveis pelo caso a aceitar a realização de uma cirurgia de “adequação” de sexo. Depois disso, Amiel foi criado como uma menina, fazendo uso de hormônios femininos para ser visto dessa maneira. A situação causava nele um desconforto interno muito grande, cuja motivação não foi compreendida até o momento em que, por acaso, ele encontrou uma carta que lhe deu pistas sobre a sua realidade: era uma pessoa intersexo. A descoberta lhe gerou um movimento de interesse muito grande que o fez decidir por esse objeto de pesquisa para o seu doutorado. Além disso, iniciou o processo de transição: hoje, Amiel se define como uma pessoa intersexo, transmasculina e bissexual.
Na pesquisa Uma autoetnografia bioética: há cuidado em saúde para a pessoa intersexo com genital atípico?, defendida em fevereiro de 2024, além de contar um pouco sobre a sua trajetória, o cientista social também apresenta conceitos e questionamentos sobre a relação da Medicina com os corpos dissidentes destas pessoas que, segundo ele, são envoltas em segredo, silêncio e poder. A proposta de desenvolver uma pesquisa autoetnográfica abordando sua própria experiência é a percepção de que as pessoas que pesquisavam intersexualidade não viviam as consequências dessa existência na pele.

Ter crescido em um ambiente hospitalar foi um ponto relevante para que Amiel buscasse ter um olhar crítico para essa relação com a Medicina. Sendo operado aos sete meses, hoje entende que o que sofreu foi uma mutilação, já que a cirurgia tinha como objetivo transformá-lo em uma mulher. Para o pesquisador, o que fica é uma sensação de que sua própria história de vida foi uma invenção. “Eu era uma mulher que não se entendia como uma mulher normal. Uma mulher que estava desencaixada, mas tinha toda uma imposição para que eu me encaixasse. Quando eu descubro a intersexualidade e essa história da operação, eu falo: ‘Agora eu vou apagar. Esse passado a gente esquece’. Ele, na realidade, nunca existiu. Foi criado, formulado, para que eu acreditasse em uma história que nunca existiu”, conta ele.
O ponto principal ao qual a pesquisa chega é de que a Medicina busca esconder ao máximo a intersexualidade, impedindo as pessoas de saberem sobre sua própria realidade, assim como toda a sociedade. Diante disso, o movimento intersexo tem buscado que o tema seja mais discutido não só pelas Ciências da Saúde, mas também pelas Ciências Humanas. O objetivo principal é dar fim às cirurgias de mutilação e garantir a autonomia desses corpos.
Ao olhar para o futuro, o sonho de Amiel é que as pessoas possam ser aceitas como são, sem mutilações ou imposições. O cientista social reflete sobre a maneira ideal de lidar com um corpo intersexo, em especial quando se trata de uma criança, garantindo a própria autonomia. “Você não tem como se transmutar para o corpo da outra pessoa e viver aquilo que ela está vivendo. Então, quando alguém toma uma decisão sobre o corpo de alguém, é tirado dessa pessoa o direito de poder habitar em si próprio no mundo. Você tira dela o direito fundamental de habitar o corpo, habitar o mundo como ela é”, conclui.