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Saúde

Desafio humanitário

Além da missão de paz brasileira a pedido da ONU, a República Democrática do Congo recebe apoio da UFRJ para desenvolver o saber em neurologia

Com a segunda maior área do continente africano, a República Democrática do Congo (RDC) é um país rico em biodiversidade e recursos minerais. Entretanto, é um dos países mais pobres do mundo. A miséria generalizada decorre da instabilidade política fomentada por países vizinhos, que exploram ilegalmente o território congolês. São altas as taxas de desnutrição, doenças e precariedade educacional. Apesar do cenário tão adverso, a professora Maria Emilia Cosenza Andraus, do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolve um importante trabalho para a melhoria dos exames neurológicos no país.

No Brasil, a UFRJ é a única instituição a participar de um projeto, capitaneado pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, voltado para fornecer tecnologias culturalmente apropriadas e baseadas em pesquisas com o potencial de melhorar a qualidade de vida de pessoas com epilepsia. Segundo dados da universidade britânica, em todo o mundo uma em cada 20 pessoas terá uma convulsão ao longo da vida e mais de 50 milhões de pessoas têm epilepsia, sendo que 85% delas vivem em países de baixa e média rendas, onde o aumento do risco de convulsões contribui para a mortalidade.

Durante encontro do projeto Accelerating Solutions for Global Epilepsy with Novel Diagnostics and Apps – The Agenda Study, há dois anos, o professor Arjune Sen, que lidera a iniciativa em Oxford, apresentou à professora Maria Emilia o médico congolês Kazadi Kitumba Prince, que relatou as dificuldades de realizar exames de eletroencefalograma (EEG) no país devido à falta de equipamentos e profissionais especializados. Alguns meses depois, o médico buscou a brasileira nas redes sociais e entrou em contado para saber se a UFRJ teria um acordo para ajudar o país dele. Nada de concreto havia e a burocracia retardaria qualquer iniciativa formal.

Disposta a ajudar, Maria Emilia reativou um curso de extensão (registrado na PR-5/UFRJ) realização e diagnóstico de EEG suspenso pela pandemia de Covid-19. Adaptadas para versão on-line, as aulas seriam em inglês. “Como na RDC a língua oficial é o francês, fiz uma busca ativa de alunos da Faculdade de Medicina oriundos de países africanos que falassem o idioma. Encontrei os estudantes Ange-Quentin Togbe, do Benin, e a congolesa Candy Mbuyamba Mpingiabo, que, juntos com o aluno brasileiro Augusto Cesar Santiago, fluente em inglês, ajudaram a possibilitar a existência do curso”, conta a professora.

Além do próprio Kazadi, os médicos Lubendo Moïse, Tshiyuk Daniel e Kimponto Nazaire participaram das aulas ao longo de dois meses. “O interesse e a necessidade deles eram tão grandes que Prince esteve presente às aulas até no dia do nascimento da filha”, relatou Maria Emilia. Alguns meses depois, Prince, Moïse e Robert Olodo (outro médico congolês) estiveram no Brasil para aperfeiçoamento presencial no treinamento intensivo em realização e interpretação do EEG no Instituto de Neurologia Deolindo Couto (INDC), da UFRJ, coordenado por Maria Emilia e com o apoio de Cesar Andraus, diretor do INDC à época, e do professor Arjune Sen.

Doação de equipamento

O desafio não terminara. Com a população de mais de 105 milhões de pessoas, o 14º país mais populoso do mundo, o Congo dispunha de apenas cinco aparelhos de EEG concentrados nas grandes cidades. A proposta dos médicos congoleses era realizar o atendimento em áreas rurais. Prince preside a Epilepsy Awareness Foundation for DRC – Aslek (em tradução livre, Fundação de Conscientização sobre Epilepsia da RDC), instituição filantrópica e sem recursos para aquisição de novos equipamentos.

Maria Emilia, então, tomou a iniciativa de buscar empresas brasileiras que pudessem ajudar. Encontrou, assim, na cidade de Itajubá, em Minas Gerais, o auxílio necessário. “Além de doarem o equipamento, um moderno aparelho portátil, os donos do empreendimento custearam todas as despesas com transporte até a África. Um gesto generoso e solidário”, afirmou a professora.

A professora Maria Emilia Andraus representa a UFRJ e o Brasil no projeto Accelerating Solutions for Global Epilepsy with Novel Diagnostics and Apps – The Agenda Study, da Universidade de Oxford, do Reino Unido

Colonização infame

As potências europeias do século XIX reuniram-se em uma conferência no ano de 1885 para definir a partilha da África.  O rei Leopoldo II, da Bélgica, fez a proposta de levar uma missão civilizatória e filantrópica à região da bacia do rio do Congo. O monarca passou a ser detentor de uma área no centro da África, maior que o estado do Amazonas, com mais de 2 milhões de metros quadrados. Submetidos a trabalhos forçados para extração das riquezas do país, milhões de congoleses eram mortos ou mutilados se houvesse improdutividade. A brutalidade era tamanha que cerca de 10 milhões de pessoas foram mortas pela fome, por doenças e maus-tratos no período colonial.

A independência do Congo belga, um dos regimes coloniais mais infames da história, ocorreu em 1960. O Brasil logo reconheceu a libertação, mas as relações diplomáticas entre os dois países só foram restabelecidas oito anos depois. Foram cinco anos de agitação política após a libertação da Bélgica, até o país passar a ser chamado de Zaire. A embaixada brasileira na capital do país, Kinshasa, no entanto, foi fechada, em 1997, 25 anos após ter sido aberta.

A reabertura da missão diplomática brasileira foi retomada em 2004, dando início ao novo ciclo de aproximação entre os dois países. Brasil, Indonésia e RDC firmaram a Declaração Conjunta sobre Cooperação em Florestas Tropicais e Ação Climática, em 2022, para fortalecer as posições dos três detentores das maiores florestas tropicais do mundo nas negociações multilaterais sobre o clima. Na Cúpula da Amazônia realizada em Belém do Pará em 2023, o presidente Félix Tshisekedi tornou-se o primeiro líder da RDC a visitar o Brasil.

Em fevereiro deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) nomeou o general brasileiro Ulisses de Mesquita Gomes como comandante da força militar da Missão das Nações Unidas de Estabilização na República Democrática do Congo – Monusco a fim de conter as ações do grupo paramilitar M23 e das incursões do exército de Ruanda ao país. O pequeno vizinho africano estimula a desordem no Congo para se beneficiar das riquezas minerais contrabandeadas da região.

A iniciativa da professora Maria Emilia foi apresentada em outubro do ano passado no Congresso Brasileiro de Neurologia. Em fevereiro de 2025, o trabalho foi reconhecido durante o 22º encontro anual da Society for Brain Mapping and Therapeutics (SBMT), em Los Angeles (EUA). Ainda neste ano, no Congresso Internacional de Epilepsia da Liga Internacional contra Epilepsia (Ilae, sigla em inglês), que ocorrerá em Portugal, o caso será também apresentado. Hoje, a professora mantém um grupo de estudos de educação continuada para dar apoio e aperfeiçoamento aos congoleses. Ela criou um novo projeto de extensão, agregando outros estudantes de Medicina da UFRJ oriundos de Angola, Congo-Brazaville, Gabão, Haiti e Quênia. De acordo com a Emilia, um dos grandes objetivos é que esses estudantes se tornem sementes do conhecimento em epilepsia e EEG para que possam ajudar a semeá-lo, quando oportuno, em seus países de origem, além de se tornarem referências para os conterrâneos.

Segundo Maria Emilia, no projeto há a participação de outras pessoas não ligadas à área da saúde, como a historiadora inglesa Sloan Mahone, o cinegrafista Simone Grassi, ambos da Universidade de Oxford, o bibliotecário documentalista Robson Teixeira, do INDC, e o professor Wallace de Moraes, diretor do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi). “A ideia é difundir o conhecimento em epilepsia e EEG em países de baixa e média rendas, e realizar trocas culturais, especialmente com os congoleses, que trouxeram vários elementos para o Brasil pelo grupo etnolinguístico banto e que hoje se perderam no Congo contemporâneo, conforme relato dos habitantes do país ”, concluiu a professora.