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Opinião

Voltaire e a história da criança brasileira

Giuseppe Pastura reflete sobre a situação das crianças no Brasil

A trajetória de todos os profissionais envolvidos no cuidado à infância se assemelha muito ao conto filosófico Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire. De um lado, temos Pangloss, uma representação do filósofo Leibniz, dizendo: “Está demonstrado que as coisas não podem ser de outro jeito: pois tudo existindo para um fim, tudo existe necessariamente para o melhor fim. Tudo está da melhor forma possível.”Ou seja, que precisamos acreditar em um mundo criado por Deus para ser o melhor possível.

De outro, temos a dura realidade da infância brasileira. A história de nossas crianças não é nada gloriosa. É, na verdade, uma saga de sobreviventes em meio a injustiças e desigualdade.

Muitas das crianças portuguesas vieram em navios, servindo como aprendizes de marinheiros sob as piores condições possíveis. Eram escolhidas por razões bem práticas: comem menos e podem desempenhar várias funções a bordo. Quando ocorriam naufrágios, as crianças nunca eram prioridade. Sem esquecer que abusos de toda sorte constituíam a regra nos navios que cruzavam o Atlântico.

A expectativa de vida da criança na época do descobrimento era de 14 anos, e metade delas morria antes dos 7. Logo, era melhor usar essa força de trabalho antes que sucumbisse às doenças infectocontagiosas tão comuns naquele tempo. Muitos dos pequenos marujos eram raptados de famílias judaicas para o povoamento das colônias. Meninas menores de 16 anos que tivessem perdido apenas o pai eram consideradas órfãs e poderiam ser gentilmente designadas para gerar filhos no além-mar….

E os pequenos indígenas? A conversão sempre foi um objetivo dos jesuítas. Ao contrário de seus pais, não teriam forças para contradizer a fé cristã e poderiam servir de tábula rasa, a partir da qual a fé católica poderia ser impressa com maior facilidade. E o que fazer quando os indiozinhos se opusessem aos seus instrutores? Açoites e castigos físicos, até então desconhecidos pelos nossos primeiros habitantes, foram introduzidos com endosso do padre José de Anchieta. E se esses meninos quisessem, afinal, ingressar na ordem? Diversos ocupantes do cargo de superior-geral da Companhia de Jesus posicionavam-se frontalmente contra a admissão de indígenas e mamelucos em seus quadros.

Contrapondo-se ao cuidado e ao desvelo dispensado aos filhos da elite branca, o que dizer da realidade dos pequenos negros embarcados na África em direção às terras brasileiras? Uma frase pode resumir sua utilidade: fazer a mãe servir como ama de leite, inclusive sendo negociada com esse objetivo. E a sobrevida desses pequenos seres era, obviamente, a última das prioridades de seu senhor. Sequer eram amamentadas, em detrimento das crianças brancas. Algo que os próprios indígenas valorizavam até idades maiores e que hoje é saudavelmente preconizado por todas as sociedades de Pediatria mundo afora, o aleitamento era cruelmente vedado aos pequenos negros. Objetivamente, crianças filhas de escravos não tinham condições físicas para exercer o trabalho extenuante das minas e lavouras, sendo assim consideradas apenas um indivíduo a mais a ser alimentado. Eram, portanto, descartáveis. Muitas vezes, os pequenos eram deixados sozinhos. E o que decorre disso? Acidentes passaram a se somar às causas tradicionais de mortalidade – tais como desnutrição, diarreia, pneumonia –, configurando a tragédia social que se abatia sobre essa população e que não é tão distante do que vemos atualmente.

E hoje, afinal? Nossa situação, sem dúvidas, melhorou. Mas estamos longe do ideal. Segundo dados do relatório do Unicef intitulado “As múltiplas dimensões da pobreza na infância e na adolescência no Brasil”, temos 32 milhões de meninos e meninas vivendo na pobreza. Isso representa 63% da população com idade até 17 anos.

Considerando que os primeiros anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento cognitivo, estamos comprometendo o futuro de uma geração inteira. E não restam dúvidas de que essa realidade é sempre pior para as classes mais desfavorecidas.

Até completarem um ano, crianças negras têm 22,5% a mais de chance de morrer do que as brancas, e cerca de 70% das mortes de crianças negras com até um ano poderiam ter sido evitadas.

E qual é a solução para tamanho desafio? Recorremos novamente à mesma obra de Voltaire, Cândido, ou o Otimismo: “É preciso cultivar o nosso jardim. Trabalhemos sem tanta argumentação. É o único meio de tornar a vida suportável. Isto afasta o tédio, o vício e a necessidade.”

E qual é o jardim que precisa ser cultivado? Afinal, qual é o nosso destino manifesto? Onde está o nosso “Quinto Império”, da História do Futuro, do padre Antônio Vieira?

Não hesito em responder: atender bem as crianças e, consequentemente, ensinar uma Pediatria de excelência para todas as áreas da saúde.

O padre Antônio Vieira, em seu célebre Sermão do Primeiro Domingo do Advento, que é o tempo que precede a chegada do Natal, já dizia: “A perfeição não consiste nos verbos, senão nos advérbios: não em que nossas obras sejam apenas honestas e boas, senão em que sejam bem feitas.”

Vamos cultivar o nosso jardim e lutar por um cuidado às crianças adequado aos novos tempos. Hoje estamos muito distantes disso. Precisamos resgatar o zeitgeist da época de fundação do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da UFRJ, que fará 70 anos em 2023 e era considerado um marco da modernidade quando foi erguido.

Não há futuro sem pensarmos em colocar o ensino, a pesquisa e a extensão em primeiro lugar; em internacionalizar nossa instituição; em utilizar ferramentas de informática para agilizar a resolução de problemas; em garantir qualidade no atendimento e segurança do paciente; em priorizar a criança em situação de vulnerabilidade (afinal de contas, somos um instrumento para reduzir desigualdades); em cuidar das mães das crianças com doenças crônicas; em pensar em saúde e educação financeira das famílias; e, finalmente, em investir em sustentabilidade e responsabilidade social.

Encerro esta reflexão com uma frase do professor Cesar Pernetta, retirada de seu discurso de posse como catedrático da Faculdade de Medicina da UFRJ: “Cada povo tem diante de si o seu futuro, não como uma ideia abstrata, insondável e imprevisível, mas representado por uma realidade concreta, que é a criança. Concreta e inteiramente à mercê de cuidados alheios. O futuro de uma comunidade está na estreita dependência do zelo que esta comunidade dispensar à criança.”

*Giuseppe Pastura é diretor-geral do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Clínica Médica também pela UFRJ e pós-doutorado em TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) pela Julius-Maximilians-Universität Würzburg – Alemanha.