Os versos que inauguram a matéria finalizam o icônico poema Identidade Indígena (1975), de Eliane Lima dos Santos, a Eliane Potiguara. Nesta quinta-feira, 25/11, o Conselho Universitário (Consuni), órgão máximo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, decidiu conceder o título de doutora honoris causa a ela, considerada a primeira escritora indígena do Brasil.
“Acho maravilhosa essa indicação! É a recuperação de aspectos culturais dos nossos povos e a UFRJ tem uma função essencial na sinalização disso. Parabenizo a iniciativa da Faculdade de Letras”, ressaltou Carlos Frederico Leão Rocha, reitor em exercício.
Professora, poeta, contadora de histórias, mãe, avó. Eliane Potiguara completou 71 anos no dia 29/9. Fundadora do Grupo Mulher-Educação Indígena (Grumin) e cofundadora do Enlace Continental de Mujeres Indígenas de las Americas (Ecmia), a intelectual é graduada em Letras e licenciada em Educação pela UFRJ.
Seu poema Identidade Indígena é um marco da escrita indígena, de autoria única e referência para a poesia brasileira contemporânea. Segundo a professora Beatriz Resende, da Faculdade de Letras da UFRJ, é a partir de 1990 que a literatura indígena brasileira passa a integrar publicamente o universo editorial. Assim, surgia uma literatura com tema e personagens dos espaços indígenas que se diferencia daquela que, até então, levava o indígena ao leitor, ao crítico literário, ao professor.
Em 1990, Eliane Potiguara foi a primeira mulher indígena a conseguir uma petição no 47º Congresso dos Índios Norte-Americanos, no Novo México, para ser apresentada à Organização das Nações Unidas (ONU). Por isso, participou por muitos anos da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Indígenas, na ONU, em Genebra. Por conta do seu protagonismo, recebeu em 1996 o título “Cidadania Internacional”, concedido pela filosofia iraniana Bahá’í, que trabalha pela implantação da paz mundial.
No fim de 1992, a obra A Terra é a Mãe do Índio foi premiada pelo Pen Club da Inglaterra, no mesmo momento em que Eliane e o jornalista Caco Barcellos eram citados na lista dos marcados para morrer, anunciados no Jornal Nacional, da TV Globo, por terem denunciado esquemas duvidosos e violação dos direitos humanos e indígenas.
Em 1995, na China, no Tribunal das Histórias Não Contadas e Direitos Humanos das Mulheres/Conferência da ONU, Eliane Potiguara narrou a história de sua família, que emigrou das terras paraibanas nos anos 1920 por ação violenta dos colonizadores, e as consequências físicas e morais dessa violência à dignidade histórica de seu bisavô, Chico Solón de Souza, avós e descendentes. Contou, ainda, o terror físico, moral e psicológico pelo qual passou ao buscar a verdade, além de sofrer abuso sexual, violência psicológica e humilhação por ser levada pela Polícia Federal, por estar defendendo os povos indígenas, seus parentes, do racismo e da exploração.
A condecoração da UFRJ é motivada pelo fato de a escritora evocar memórias e experiências como indígena, trazendo sua ancestralidade, sua cultura e seus protestos para a literatura brasileira. Ela é considerada combatente pelos direitos humanos, representante das reivindicações dos povos indígenas em instâncias nacionais e internacionais − lutadora por direitos das mulheres na prática fundadora de um feminismo indígena.
“Pensar a poesia em Eliane Potiguara é reconhecer a construção da diferença, pois se trata de uma poesia em que a identidade literária se constrói à luz das tradições, como quer a voz da enunciação indígena”, afirma Graça Graúna, crítica literária, também potiguara.
O conselheiro Clynton Lourenço Correa, relator do processo no Consuni, destacou a importância do título à intelectual.
“Considerando a relevância dos textos e das ações da escritora Eliane Potiguara, que retrata a realidade dos povos indígenas, em especial, que vivem no Brasil, é importante dar voz àqueles que são os primogênitos brasileiros, antes da colonização europeia. Reconhecer a trajetória de Eliane Potiguara é dar a oportunidade de reconhecer a história narrada por outro interlocutor, nesse caso, aqueles que têm sofrido desde o processo da colonização europeia no Brasil, os povos indígenas. Assim, a concessão do título honorífico pela UFRJ para Eliane Potiguara pode ajudar no autoconhecimento sobre a origem da nossa sociedade, bem como contribuir para a reflexão de qual tipo de sociedade desejamos construir para as futuras gerações no Brasil, evitando cometer erros do passado para a promoção de uma sociedade mais justa e fraterna”, afirmou o professor.