Por Jean Souza
Érika Fernanda de Carvalho é assistente social da UFRJ e coordenadora do Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR), projeto da Universidade no bairro. As atividades visam ao enfrentamento da violência de gênero no local e fazem parte do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas em Direitos Humanos, órgão do Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
“Além de ser um projeto de extensão, o CRMM-CR faz parte de um conjunto de serviços especializados no atendimento às mulheres em situação de violência, cujas diretrizes são definidas pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres”, diz a servidora, nesta entrevista concedida ao Portal UFRJ.
A violência de gênero afeta mais as mulheres negras que as brancas?
A violência de gênero contra as mulheres é um fenômeno que persiste no tempo e, ainda que se manifeste de formas diferentes, está presente em todas as sociedades, independentemente de seu estado de desenvolvimento socioeconômico. Dados do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência (2017) apontam que, no Brasil, uma jovem negra está duas vezes mais vulnerável à violência do que uma jovem branca. O Mapa da Violência 2015 ˗ Homicídio de Mulheres no Brasil mostra que o homicídio de mulheres negras teve um aumento de 54%, enquanto o assassinato de mulheres brancas caiu 9,8%. De acordo com o Dossiê Mulher 2018, duas em cada três mulheres vítimas de homicídio doloso no estado do Rio de Janeiro eram negras. A partir dos dados apresentados é possível afirmar que a violência de gênero contra as mulheres tem cor! E essa maior vulnerabilidade tem como fundamento o racismo. Os estereótipos atribuídos às mulheres negras (seus corpos são desumanizados e hipersexualizados) e a herança do passado escravocrata contribuem para a cultura da violência contra essas mulheres. Assim, pensar o fenômeno da violência contra as mulheres e as estratégias para o seu enfrentamento exige uma reflexão sobre a questão racial: sobre como o racismo estrutura as relações sociais em nosso país e o seu impacto na vida das mulheres negras.
Como a questão racial está presente no trabalho com as mulheres da Maré?
Apesar de as mulheres negras serem o alvo preferencial da violência e da negação dos direitos, nós não tínhamos um olhar atento sobre essa questão. A partir da provocação de estagiárias negras, passamos a nos preocupar com uma abordagem mais racializada. Uma das primeiras iniciativas nessa direção foi o curso “Tecendo Reflexões sobre Gênero e Raça”, em formato EaD [Ensino a Distância], que está em sua quarta edição. A adoção de uma abordagem racializada passa pela formação de parte da equipe e, aos poucos, vai se estendendo para as diferentes atividades desenvolvidas e para a supervisão de equipe, contemplando todo o corpo técnico do CRMM-CR. Desse modo, passamos a discutir mais sobre racismo e sobre mulheres negras. E o nosso olhar e análise sobre os casos passaram a considerar a questão racial. Foi uma mudança tardia, uma vez que as mulheres da Maré são majoritariamente negras, mas de fundamental importância para repensarmos nossas estratégias de atuação junto às mulheres.
Quais os principais impactos da violência sobre a saúde das mulheres atendidas pelo CRMM?
É difícil falar sobre os impactos da violência sobre a saúde das mulheres atendidas pelo CRMM-CR, pois ainda não desenvolvemos uma pesquisa nessa direção. Porém, a Organização Mundial de Saúde (OMS), em seu primeiro levantamento de dados globais sobre violência contra as mulheres, publicado em 2013, aponta que, em todo o mundo, 42% das mulheres sofreram as consequências do fenômeno em sua saúde física e mental como, por exemplo, depressão, dependência alcoólica e contração de doenças sexualmente transmissíveis.
Como a universidade tem atuado para melhorar esse quadro? Que políticas públicas são necessárias para combater o problema da violência de gênero?
Há mais de dez anos, a UFRJ, por meio da Pró-Reitoria de Extensão, tem investido na prevenção e no enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres, por meio do Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa, localizado na Vila do João. O CRMM-CR é um projeto de extensão que tem como objetivo: promover a ruptura da situação de violência e o fortalecimento da cidadania feminina por meio de diferentes ações, tais como: 1) o atendimento interdisciplinar (psicológico e social) à mulher em situação de violência; 2) as Oficinas Socioculturais; 3) as atividades de sensibilização (rodas de conversa, cine-debate, oficinas, seminários, campanhas, entre outros; e 4) atividades de capacitação ˗ cursos de educação a distância sobre gênero e raça e sobre notificação compulsória e oficinas.
O enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres exige uma ação conjunta dos diversos setores das políticas públicas (saúde, educação, segurança pública, justiça, assistência social, trabalho, entre outros), a fim de propor ações que problematizem as desigualdades que estruturam as relações sociais ˗ gênero, raça/etnia e classe ˗ e contribuam para uma mudança cultural; garantam a responsabilização dos autores de violência; promovam o fortalecimento da cidadania feminina; garantam o atendimento humanizado e qualificado às mulheres, por meio do fortalecimento da rede de atendimento, que é composta por vários serviços, dentre os quais destacamos: centros de referência, serviços de saúde, casas-abrigo, delegacias especializadas, defensorias públicas, juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Gostaria que você descrevesse o processo de acolhimento no CRMM. Em que situações e em que momento as mulheres podem procurar o corpo de profissionais da UFRJ?
Quando a mulher chega ao CRMM-CR, ela é recepcionada pelo técnico-administrativo, que apresentará o trabalho desenvolvido pelo equipamento e a encaminhará ao acolhimento, que é o primeiro atendimento. O acolhimento é realizado pelas assistentes sociais e/ou o psicólogo e tem por finalidade ouvir o relato da mulher de forma qualificada, identificar suas demandas, apresentar, informar a mulher em situação de violência sobre seus direitos, opções de encaminhamento, entre outras questões. É importante ressaltar que a situação de violência não será resolvida em um único atendimento. O centro de referência atua de forma contínua e sistemática, em conjunto com a mulher atendida, na construção de alternativas para a superação da violência sofrida, o que demanda um acompanhamento pela equipe interdisciplinar, se assim ela desejar. Além do atendimento individual, a mulher pode acessar as atividades grupais, tais como oficinas, rodas de conversa, cine-debate.
O CRMM-CR funciona de segunda a quinta-feira, das 9h às 16h30, na Rua Dezessete, s/n°, ao lado do Posto de Saúde da Vila do João ˗ Maré. O telefone para contato é (21) 3104-9896 e o centro tem uma página no Facebook.
Confira as outras entrevistas da série sobre a Consciência Negra:
A filosofia stricto sensu dos terreiros de candomblé, Muniz Sodré
“Racismo é um câncer social que dá em pessoas brancas”, Aza Njeri.
“Não deixaremos de ocupar os lugares na sociedade”, Dandara Silva.
“A representatividade deve estar nos três poderes da República”, Martinho da Vila.