Um estudo divulgado recentemente pelo Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef), realizado em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), na Argentina, revelou a quebra de um paradigma social. Contrariando o senso comum, a pesquisa apontou que, em escolas frequentadas por alunos de classe alta, a prática do bullying é mais recorrente. De acordo com o trabalho “Clima, conflitos e violência na escola”, diferentemente do que se imaginava, os estudantes das classes mais vulneráveis socialmente não são necessariamente os mais violentos nas escolas.
Nos colégios privados, 13,2% dos alunos disseram que já foram alvos da crueldade de seus companheiros e 15,1% foram satirizados por alguma característica física. Nas públicas, esses números são de 4,3% e 12,9%, respectivamente. Além disso, 23% dos entrevistados garantiram terem sido humilhados ou insultados pelos professores, diante de outros alunos. A pesquisa entrevistou 1.690 alunos de ensino médio da Argentina, de 93 escolas públicas e privadas.
“Ter dinheiro ou acesso ao dinheiro não faz nada com ninguém, como usamos o dinheiro ou o que fazemos com o fato de termos mais ou menos poder aquisitivo do que outros com quem convivemos, aí sim, isso pode determinar como eu lido com as pessoas e as coisas. Mas esse ‘como eu lido com’ foi construído a partir de relacionamentos, a partir de modelos identificatórios, que, no inicio da vida de qualquer pessoa, são os pais que os representam”, afirmou Maria Vitória Maia, doutora em Psicologia Clínica, Psicopedagoga e coordenadora do grupo de pesquisa Criar e brincar: o lúdico na escola e vice-coordenadora do Laboratório de Pesquisas, Estudos e Apoio à Participação e à Diversidade em Educação, LaPEADE-UFRJ.
Segundo ela, o bullying independe de classe social, é uma construção responsiva, ou seja, uma resposta a um cenário constantemente vivido, que passa a ser a forma daquela criança ou adolescente lidar com o mundo. “O fator monetário não determina se uma pessoa poderá praticar bullying ou não. São múltiplas as causas que determinam a violência e a agressividade como uma forma de comunicação e de comportamento”, ressalta a especialista.
Maria Vitória alerta que o afeto sem medida e o cuidado excessivo podem prejudicar o desenvolvimento psicológico da criança ou adolescente. “Se tudo suprimos, principalmente se esse alguém é uma criança, não ensinamos a ela que somente aprendemos a viver se temos algo por que lutar ou pelo qual estar motivado a conseguir chegar lá. O afeto também precisa de limites”, disse.
A psicóloga e educadora destaca a importância de dizer “não” à criança desde as primeiras experiências sociais. “O que deve ser construído, desde o inicio, é limite com afeto, é respeito pelo outro, valores éticos. Isso evita que uma criança venha se valer da agressão ao outro como forma de impor sua ideia, sua liderança ou sua vontade, porque ela não terá aprendido essa linguagem no seu primeiro ambiente de socialização, ou seja, em casa”, esclareceu.
Mas como diferenciar o bullying de uma simples brincadeira de escola? Na opinião de Maria Vitória, o ponto determinante é o lúdico. “O limite entre qualquer brincadeira e o bullying é exatamente o limite do lúdico. Sumido o humor e a criatividade de cena, não temos o brincar e, sim, outra coisa marcada pela dor”, explicou. “No brincar, todos estão em vinculação, mesmo que haja brigas ou questões, elas são momentâneas e passam com o reacordo das regras do jogo que estava acontecendo. No bullying, o divertimento é unilateral, se é que podemos dizer que há divertimento nessa questão”, completou.
De acordo com a vice-coordenadora do LaPEADE-UFRJ, os extremos de liberdade e de punição não são saudáveis para o amadurecimento psicológico infanto-juvenil. “Excesso de permissividade é ruim, excesso de regras autoritárias igualmente. Excessos ou faltas demasiadas paralisam o desenvolvimento psicológico e cognitivo de uma criança, de um adolescente”, disse. Punir constante não gera resultados positivos, pelo contrário, causa efeitos cumulativos. “Um dia, o jogo muda e aquele que respeitava por medo irá devolver ao outro um ódio sem tamanho”, completou.
Os indícios de bullying podem ser de várias ordens, mas alguns são mais usuais: sintomas psicossomáticos (cefaleia, cansaço crônico, insônia, dificuldade de concentração, náuseas, diarreia, palpitações, alergias, sudorese, tensão muscular); transtorno do pânico; fobia escolar e fobia social, transtorno de ansiedade generalizada; depressão; anorexia e bulimia; transtorno obsessivo-compulsivo; transtorno do estresse pós-traumático. “A diminuição da fome, o lanche que volta intacto, ou a inapetência antes de ir para a escola ou ao voltar pode ser um indício e merece a atenção dos responsáveis”, afirmou.
Maria Vitória sugere que a melhor forma de combater o bullying é ficar atento às reações apresentadas, não admitir qualquer ato agressivo e violento e fazer valer a lei que rege seja a família ou a escola. “É necessário, principalmente, ouvir todos os lados, porque não somente quem sofre o bullying precisa de ajuda e tratamento, se for o caso, mas, igualmente, aquele que pratica precisa também”, concluiu.