As ciências, o conhecimento popular e as religiões têm papel fundamental no que se refere à formação de uma pessoa: são essenciais para a construção da individualidade. No entanto, cada um desses conjuntos de práticas traz em si valores que também nos tornam integrantes de determinados grupos – ou tribos, num vocabulário mais moderno. O que fazer, então, quando é justamente nessas entidades formadoras de opinião e crença que a violência pode se manifestar e legitimar?
Essa pergunta foi a força-motriz do Seminário Não-violência, Direitos Humanos e Segurança Cidadã: um desafio de Comunicação e Cultura. O evento teve a participação do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência (NETCCON) na 28ª Semana Gandhi e contou com a presença dos especialistas Lia Diskin, Michel Misse, Célia Passos, Luiz Eduardo Soares e Evandro Vieira Ouriques.
Com tranquilidade a co-fundadora da Associação Palas Athena e especialista em meditação, Lia Diskin defendeu a extensão de uma cultura de paz, tolerância e não-violência. Argumentou ser o século XX o mais agressivo da humanidade. E dá dados: no período compreendido entre os séculos I e XV d.C. cerca de quatro milhões de pessoas perderam a vida em conflitos bélicos. O número, distribuído ao longo de 15 séculos, parece diminuto se comparado às 111 milhões de mortes registradas nos cem anos no século passado.
Além das perdas humanas em si, restam as conseqüências: “As guerras não finalizam quando se assina um tratado de paz”, e acrescenta “Elas deixam seqüelas e reverberações por cerca de três gerações.” Neste sentido, nós ainda estaríamos sentindo os impactos causados pela Segunda Guerra Mundial, por exemplo.
Para Diskin, o maior problema a ser enfrentado é uma crescente naturalização da violência. Muitos, diz ela, crêem que o desejo de destruição seria uma espécie de instinto natural humano, e, por isso mesmo, inescapável. Ela explica, porém, que nenhum psiquiatra ou neurologista deu comprovação absoluta de que isso seja verdade. Inclusive, parece contraditório atribuir naturalidade ao comportamento destrutivo, uma vez que uma violência hereditária que afete os próprios congêneres não ocorre com freqüência mesmo no reino animal. “Há de se desnaturalizar comportamentos que, na verdade, são adquiridos”, completa.
Michel Misse, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS), colocou em debate se seria possível controlar a violência sem o uso da violência. Para responder a essa pergunta, sugere que o foco seja não o violento em si, mas o sofrimento provocado. Observando por este ângulo, conclui: “a violência é como uma cobra que morde o próprio rabo”. Ao provocar sofrimento, poderá produzir dois tipos de reação sobre sua “vítima”: ou gerará o que ele chama de rebeldia afirmativa, ou gerará ressentimento. No primeiro caso, a ação será em favor dos próprios direitos. No segundo, a de reproduzir e relocar a violência.
Para combater esse mal sem gerar ainda mais prejuízos, o professor sugere o contato com o sofrimento, através de relatos daqueles que têm do que se queixar. “Quem sempre domina não descobre o outro. Isso só é possível através da experiência da subalternidade”, diz. Dessa maneira, ouvir as histórias, mesmo as mais escabrosas, daqueles que sofrem seria capaz de gerar a empatia necessária para que as ações violentas sejam repensadas.