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I Encontro da Transculturação Indígena

 Ocorreu ontem, dia 17, o I Encontro da Transculturação Indígena: presente e futuro, organizado pela pesquisadora Vera Kauss, do Centro de Estudos Afrânio Coutinho (CEAC) da Faculdade de Letras da UFRJ. O evento procurou mostrar ao público que existem profissionais indígenas de diversas comunidades escrevendo e interagindo com o desenvolvimento educacional, criando uma possibilidade de entendimento e de respeito ao pensamento desses povos. Estiveram presentes, além de pesquisadores e professores da UFRJ, representantes da etnia Pataxó e professores e escritores também indígenas, como Eliane Potyguara e Olívio Jecupé.

A mesa de abertura foi composta pela organizadora, Vera Kauss, pelo professor e coordenador do CEAC, Eduardo Coutinho, e por Evando dos Santos, pedreiro sergipano apaixonado por livros e criador da biblioteca Tobias Barreto de Meneses, uma das mais representativas bibliotecas comunitárias do Brasil, batizada com o nome de seu escritor preferido.

Eduardo Coutinho apontou os diferentes momentos da literatura brasileira em que os índios foram retratados. Segundo o professor, a figura do indígena aparece de diferentes maneiras na literatura desde a época da colonização das Américas, porém sempre retratada através da fala de um outro, seja esta fala idealizadora e exaltante, como na primeira metade do século XIX, ou baseada em denúncias de maus tratos contra este povo, marcante na década de 1920. “O que temos visto é a literatura sobre o indígena na voz do homem branco. Uma literatura que falava deles, mas que não era produzida por eles. Só agora a produção indígena está sendo incorporada pela academia e não vista como algo menor e da esfera do folclore”, afirmou Coutinho.

Coutinho também diferenciou transculturação de aculturação, sendo o primeiro o processo de transformação de padrões culturais locais a partir da adoção de novos padrões de outras culturas e o segundo o processo de absorção de uma cultura pela outra por imposição.

— Recentemente, com a questão da diversidade cultural em voga, a cultura indígena passou a ser valorizada. Hoje temos uma produção literária escrita por indígenas ou seus descendentes, pelos narradores da transculturação. Essa produção tem que ser divulgada a fundo no meio universitário. Esse é um avanço que deve ser explorado — disse Coutinho.

Evando dos Santos lembrou que muitas palavras de uso comum no dia-dia das pessoas, como Maracanã, são indígenas. Por isso, ele ressaltou a importância da leitura e do ensino das línguas indígenas na escola. “Essas palavras deveriam ser ensinadas já no primário. A criança deveria ter noções de palavras não só indígenas, como também africanas, para conhecer suas origens”.

Educação indígena ou para índios?
 
Na palestra Educação para os grupos minoritários, com o professor Elton Brandão, do Departamento de Didática da Faculdade de Educação UFRJ, e a professora indígena Andrea Salles, do programa Pró-Índio da faculdade de educação da UERJ, foram discutidos os diferentes aspectos da educação indígena.

Andrea diferenciou a educação indígena — aquela que é constituída pelas práticas da aldeia e transmitida oralmente e através da observação dos mais novos aos mais velhos — da educação escolar para índios. A educação escolar para índios, segundo ela, é aquela que teve início com a chegada dos jesuítas, na qual a escola representa “um instrumento de aculturação e um cemitério de línguas”. Esse modelo educacional não é praticado por professores indígenas, mas por homens brancos que tentam impor sua cultura.

Já na educação escolar para indígenas, os costumes da cultura ou da etnia são preservados e ensinados por professores também indígenas. “A partir da Constituição de 1988, a educação indígena rompeu com a idéia de integração do índio à sociedade branca”, disse a pesquisadora.

Este modelo de educação recebe um tratamento especial por parte do Ministério da Educação (MEC). As escolas, os programas para formação de professor e a publicação de materiais didáticos diferenciados são financiados pelo Governo Federal, porém a aldeia detém a autonomia para criar seu próprio currículo escolar, adaptado às suas necessidades locais. Andrea contou que a educação escolar indígena está baseada na interculturalidade, no multilinguismo e na etnicidade. Deste modo, o ensino se dá através da língua materna indígena e não apenas do português. “A educação escolar indígena deve dar acesso aos conhecimentos universais a partir da valorização das línguas maternas e da tradição de cada povo, contribuindo para a reafirmação de suas identidades” disse Andrea.

Segundo dados do Censo Escolar do MEC de 2006, existem em funcionamento no Brasil 2.422 escolas em terras indígenas atendendo a cerca de 170 mil estudantes. Nestas escolas trabalham aproximadamente 10,2 mil professores, dos quais 90% são indígenas. A maioria dessas unidades é de responsabilidade das secretarias de Educação, mas existem outras mantidas por ONGs e projetos especiais, como os da Eletronorte, ou por entidades religiosas. “A educação escolar indígena ganhou espaço e reconhecimento após muito suor e luta. Hoje não representa um instrumento de aculturação, mas de conquista e, acima de tudo, de resistência”, disse a pesquisadora.

Brandão apontou que apenas recentemente, em março deste ano, tornou-se obrigatório o ensino história e cultura indígena nas escolas de ensino fundamental e médio, através da lei nº 11.645. Se o ensino sobre a cultura indígena segue neste caminhar, a educação para indígenas está ainda mais problemática. Segundo o professor, para se pensar em educação para todos e, por extensão, para indígenas, primeiro é necessário discutir ações reparadoras, como as cotas. Porém, Brandão acredita que essas ações afirmativas possuem um cunho ideológico que acaba subestimando o próprio estudante beneficiado pela política de cotas. “Temos que educá-los e não ensinar uma cultura, de tal forma que eles possam exercer seus direitos enquanto cidadãos”, disse o professor sobre as minorias indígenas.

—Para que haja uma educação escolar para indígenas de qualidade é necessária a formação continuada para professores indígenas e um currículo que contemple cada comunidade, respeitando seu contexto e suas singularidades— concluiu o professor.