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Do Atlântico ao Pacífico: Cidades modernas e Utopia

O Seminário Internacional Do Atlântico ao Pacífico organizado pelo Forum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ realizou ontem (18/09) sua primeira  mesa-redonda intitulada Cidades e Periferias Globais, integrada por Nicolau Sevcenko, professor e do Departamento de História da Universidade de Harvard, EUA; Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ e co-organizador do livro A Cidade do Pensamento Único; Margareth Pereira, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e autora de Le Corbusier e o Brasil e Ivava Bentes, diretora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ e autora do ainda em preparação,  A  Periferia global.

Na comunicação Arquipélagos protendidos: o estigma do urbanismo do pós-guerra como desafio para as cidades do séc.XXI, Sevcenko analisou o impacto da Segunda Guerra Mundial na definição do modelo urbano que se impôs durante todo o século XX.  Segundo ele, este novo padrão, caracterizado pela racionalização abstrata que moldava a cultura e o imaginário social da época, é o responsável pelo “mal-estar contemporâneo”.

— Nunca antes tanto mudou para tantos em tão pouco tempo. Uma mudança tão intensa que separou a geração que lutou e resistiu à guerra e aqueles que iriam se tornar adultos nas gerações seguintes — disse o professor sobre a Segunda Guerra que provocou também um desentendimento entre gerações, entre pais e filhos.

Sevcenko apontou que no cenário do pós-guerra, com o surgimento da chamada Guerra Fria, outro conflito foi ampliado: a disputa tecnológica que já constituia a base dos confrontos das duas grandes guerras anteriores . “Na Segunda Guerra ocorreu uma autêntica corrida tecno-científica, a duras penas vencida pelos Aliados , e que foi acelerada na Guerra Fria” disse ele ressaltando que o avanço tecnológico era sempre determinado pelo miltar.

Com a consolidação dos EUA como potência dominante do pós-guerra, outras regiões do planeta foram influenciadas pelo seu ideal de vida e pela lógica de redistribuição de rendas do Well Fair State.  Neste período entre as décadas de 1950 e 1960, insurgiam ondas de protestos que ameaçavam os ideais de instituição americanos, principalmente na área trabalhista e sindical, nas lutas contra a segregação racial, pelos direitos civis e pela emancipação colonial.  Como exemplos, Sevcenko citou a Guerra da Argélia pela independência à França (1954 — 1962), a revolução Cubana liderada por Fidel Castro em 1959 e a Primavera de Praga em 1968.

Segundo o professor, a resposta dos setores conservadores a esta maré de reivindicações foi uma tentativa de reorganização social, econômica e do imaginário cultural através de mudanças no modo de lidar com a tecnologia.  Uma das iniciativas neste sentido, apontada ele, foi a substituição dos sistemas indústrias vigentes pela automatização, o que provocou demissões em massa e um conseqüente enfraquecimento dos sindicatos que passaram a ser locais de representação de um pequeno grupo de trabalhadores qualificados aptos a operar as novas máquinas. “Os sindicatos passam a negociar em termos de bens e vantagens e não de princípios. A tentação maior era participar dos privilégios do consumo ao invés de lutar pela massa de trabalhadores desqualificados que foram deixados para trás sem assistência social.”

— A Segunda Guerra foi um conflito contra as cidades — disse o professor apresentando o exemplo do ataques nazistas que se concentravam em obliterar as áreas urbanas e círculos culturais dos povos do leste europeu destituindo-os de sua cultura, crenças e identidades, eliminando as referências históricas da existência de cultura daquela região e provocando um processo de desurbanização. Sevcenko defendeu a idéia de que após esta guerra as grandes cidades passaram a ser vistas, sobretudo pelos americanos, como frágeis, pois concentravam em um só lugar todos os recursos de uma sociedade. ”As cidades eram vulneráveis demais para continuar sendo o foco da vida social no pós-guerra”.

A idéia que figura neste contexto é a de reconstrução do modelo de cidade e os EUA são pioneiros neste processo promovendo uma dispersão pelo seu território. “As cidades ficam esvaziadas e desinvestidas de sentido político” completou o professor. O governo dos EUA começa a deslocar os novos complexos urbanos para o interior do país e cria um sistema de integração entre eles, através das highways, rodovias inspiradas nas autobans alemães, e da construção de aeroportos regionais ligados a internacionais. 

Porém, este processo gera o fenômeno dos subúrbios americanos, típicas áreas residenciais da classe média, que dispersavam as populações de maior renda em condomínios fechados e shoppings centers enquanto os trabalhadores de baixa qualificação e minorias eram segregados nas abandonadas cidades.

Este modelo que vigorava nos EUA foi copiado por outros países da Europa e até pela América Latina e com ele, segundo Sevcenko, iniciou-se uma americanização difundida pelos meios de comunicação e pela estética racional abstrata adotada, símbolo do ideal moderno. Surgem os grandes arranha-céus e construções de vanguarda aliadas a uma estética hightec que caracterizava o chamado “Internacional Style”, como o prédio sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, e vigora o geometrismo abstrato nas artes plásticas. No Brasil, este American Way of Life se apresenta no plano rodoviário de Jucelino Kubitschek e na construção de Brasília. O Aterro do Flamengo e o aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, as galerias e museus do Parque do Ibirapuera, em São Paulo e as construções de Niemayer na Pampulha, Minas Gerais, foram outros exemplos, apontados pelo professor, do novo ideal moderno que se estabelecia.

— Brasília caracterizou a integração do Brasil na nova economia internacional, na qual o primado das tecnologias rebaixava o valor do trabalho e a preponderância do mercado indicava a desigualdade do Well Fair State — disse Sevcenko sobre a nova cidade que aderia ao Internacional Style e à nova lógica de planejamento urbano. Cidade que já em sua construção segregava os trabalhadores menos qualificados reduzindo-os a operários braçais, conhecidos como candangos, submetidos às ordens de uma elite de engenheiros.

Para o professor, esta reforma urbana que marcou o século XX tem uma aparência positiva, mas esconde seu lado nocivo. “ Essa transformação até hoje oblitera nossos sentidos reduzindo a nossa reação ao pasmo, como dos cidadãos parisienses diante da Torre Eiffel” disse interando que  poucos ousaram discordar desse modelo, entre eles Guimarães Rosa, Clarisse Lispector, Caetano Veloso, Helio Oiticica e Lygia Clark que buscaram em suas obras o nativo e o orgânico oposto ao  Internacional Style.

Utopia Urbana

Ainda dentro do tema urbano, Carlos Vainer trouxe em sua comunicação, Cidades, cidadelas e a utopia do reencontro: uma reflexão sobre utopia e urbanismo, uma análise sobre a cidade e suas possibilidades de utopia e convivência com a diversidade. Elegeu como desafio ao modelo urbano atual a instituição de uma “cidade tolerante”, onde a experiência principal dos indivíduos fosse o encontro e apontou que a atitude de tolerância observada hoje é mais uma forma de sobrevivência social do que um respeito às diferenças.

— A experiência da cidade sempre foi ligada ao encontro com o diverso — disse Vainer exemplificando com o mito de fundação de Roma. O mito conta que Rômulo, fundador da cidade, reuniu exilados, forasteiros, homicidas e escravos fugidos, que iriam povoar a cidade, em uma cerimônia na qual cada um deles jogou em um fosso circular cavado em solo romano um punhado da terra do seu lugar origem. Segundo o professor, esta história simboliza a fundação da cidade como o encontro e o pacto entre diferentes famílias e ancestrais, o que não ocorre com a cidade moderna que, porém, também nasce como espaço idealizado de liberdade e não se destina somente àqueles que nela nasceram.

Vainer apontou que diferentemente de nas cidades antigas, o habitante moderno se caracteriza pela dessemelhança com os outros cidadãos e que nunca antes povos tão diversos se reuniram em um mesmo local como acontece hoje nas cidades. “A cidade de hoje pode ser definida como o lugar do heterogêneo” disse ele completando que o urbanismo impõe o aprendizado da convivência com a diferença e exige a tolerância.

— A cidade não só tolerou como recompensou as diferenças, permitindo que uns servissem aos outros de acordo com suas especificidades — disse o professor indicando que a tolerância não é mais apenas um valor moral, mas um atributo que permite organizar a heterogeneidade. Desse modo ela se torna pragmática e se distancia da vivência da multiplicidade propiciada pelo contato inter-cultural. Vainer observou que, apesar da proximidade física entre as pessoas no espaço urbano, existe também um afastamento social que suscita um comportamento blasé, um desinteresse pelo outro, que torna superficial qualquer contato pessoal. “A tolerância parece ser muito mais uma reserva, uma defesa diante do outro".

O professor identificou o sistema capitalista como causa da atitude blasé que recai sobre as pessoas na contemporaneidade e apontou o dinheiro como o elemento comum que rege as relações na cidade. “A atitude blasé é mais que defesa, é uma forma de diferenciação do outro que é coisificado” disse Vainer completando que esta atitude se baseia antes no desconhecimento que no reconhecimento da diferença e produz a visão do outro como algo indiferenciado e reduzido ao mesmo. O que ocorre é uma explosão de individualidade que impede a comunhão entre os cidadãos e consolida a hegemonia do dinheiro e o processo de racionalização do qual falou Sevcenko.

— A diferença passa a ser buscada não mais como um valor, mas como vantagem competitiva em uma espécie de darwinismo intencional onde cada competidor procura engendrar diferenças adaptativas que lhe posicionem vantajosamente na vida da cidade — disse Vainer que enxerga a cidade como espaço onde vale a “lei da selva” que promove um interminável conflito entre os homens.

O professor acredita que os discursos políticos estão fundados na busca da competitividade e que a cidade se tornou uma mercadoria que tenta a todo custo tornar-se atrativa aos capitais do mercado globalizado. Para se destacar na “guerra entre cidades”, atrativos devem ser oferecidos, como isenções fiscais e menores custos. “Vendê-la é a função básica do governo que a representa como capital transnacional que lidera e dirige a globalização” disse Vainer sobre a cidade-mercadoria.

Como resultado desta nova condição da cidade, o professor apontou o crescimento das desigualdades e das barreiras entre grupos sociais com o surgimento de guetos, tais quais os shoppings centers e condomínios citados por Sevcenko. “A fronteira entre as cidades é cada vez mais transformada em barreiras reais que constituem cidadelas isoladas” disse Vainer completando que cerca de 50% das cidades pequenas e médias brasileiras possuem políticas de restrição a imigrantes em nome da defesa do meio ambiente ou empregos locais.

Diante do quadro urbano analisado, Vainer ainda crê na possibilidade da transformação da cidade a partir de um ideal utópico e argumentou que o homem habita a realidade simbólica por ele mesmo construída e por isso tem a capacidade de reformulá-la. “A possibilidade da utopia está presente na reconstrução da cidade como local de encontro entre os homens. Há que se reinventar a cidade!”.