O Auditório Horta Barbosa, no Centro de Tecnologia (CT) da UFRJ, campus Cidade Universitária, recebeu na manhã da última sexta-feira (14/11) dezenas de cursistas, servidores, estudantes e docentes para encerrar a 9ª edição do Curso de Formação para Atuação nas Comissões de Heteroidentificação da UFRJ. A atividade final contou com a presença ilustre da escritora, professora e intelectual Conceição Evaristo, que conduziu uma aula aberta marcada por emoção, resistência e muita cultura ancestral.
O curso, promovido pela Superintendência-Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Acessibilidade (Sgaada), teve 263 alunos inscritos e tem como objetivo capacitar membros da comunidade universitária e externa para integrar as bancas responsáveis pela heteroidentificação — procedimento adotado pelas universidades e órgãos públicos que visa garantir que as vagas destinadas às ações afirmativas para pessoas negras (pretas e pardas) sejam destinadas a quem as têm como direito. Implantada na UFRJ desde 2020, a heteroidentificação constitui um instrumento de proteção das políticas de ação afirmativa, baseado exclusivamente na apresentação fenotípica dos candidatos.
A capacitação, que combina aulas teóricas e práticas, contextualiza a luta negra no Brasil, aprofunda conceitos como raça e racismo, e prepara os cursistas para enfrentar, com responsabilidade e rigor técnico, os desafios de compor as comissões. Este ano, mais uma vez, todas as vagas do curso foram preenchidas antes do encerramento do prazo de inscrição, demonstrando o crescente interesse da pauta dentro da Universidade, corroborando o fortalecimento das ações afirmativas. Os formados estarão aptos a compor as comissões que serão realizadas a partir de 2026.
Cecília Izidoro, superintendente-adjunta da Sgaada e coordenadora do curso de extensão, afirma que ficou muito feliz com a composição da turma, sobretudo pela grande quantidade de pessoas externas à UFRJ. Segundo ela, esse número já vinha crescendo nas últimas edições, mas dessa vez a surpreendeu.
“A heteroidentificação é também um gesto de justiça”
A grande estrela do dia, Conceição Evaristo, ressaltou a importância de que espaços acadêmicos discutam e aprofundem temas ligados à identidade racial no Brasil. “Além de ser importante trazer essa temática, trata-se de pensar a própria identidade do povo brasileiro. Quando um espaço acadêmico se dedica a estudar e aplicar a heteroidentificação, ele afirma também uma conquista do movimento negro, que lutou para que as ações afirmativas existissem e fossem protegidas”, afirmou a escritora.
A turma foi composta por pessoas negras e brancas, deslocando o debate racial de um ambiente exclusivamente negro e o levando para uma discussão, urgente e necessária, para e sobre toda a sociedade brasileira. “Todas essas pessoas tiveram a oportunidade real e concreta de poder entrar em contato com os verdadeiros pilares que nos levam hoje a fazer da heteroidentificação esse portal do não retorno, de acesso a todas aquelas pessoas que sempre viveram à margem desse cenário acadêmico”, declara Izidoro.


Ao refletir sobre o caráter reparatório do procedimento, Conceição reforçou que as bancas não devem ser compreendidas como meros instrumentos burocráticos, mas como dispositivos políticos fundamentais para corrigir desigualdades históricas: “Para além da técnica, é preciso pensar em modos e meios de promover justiça. A heteroidentificação avalia quem são os sujeitos que chegam a esse espaço de poder que é a universidade. Ela recoloca, no lugar da justiça, aqueles que tiveram sua identidade negada, violentada, usurpada. É um gesto que ultrapassa o procedimento e alcança o campo da reparação histórica”, completou.
A fala da escritora, atualmente um dos principais nomes da literatura brasileira, foi permeada por memórias pessoais, análises políticas e referências a pensadores negros, como Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento. Logo no início, Evaristo revisitou sua própria trajetória acadêmica, ainda marcada por episódios de racismo: “Quando entrei no curso de Letras, em 1976, contávamos nos dedos quantos estudantes negros havia […]. Hoje, estar aqui, num curso como este, vendo tantos corpos negros ocupando esse espaço, é esperançoso. Não um esperançar passivo, mas o esperançar que é ação, como dizia Paulo Freire”.
A escritora também destacou a importância da presença negra nos ambientes acadêmicos, reforçando a ideia de que ter mais pessoas negras em uma comunidade universitária não é apenas uma conquista individual, mas um movimento coletivo de enfrentamento às estruturas racistas da sociedade. “O espaço acadêmico é um espaço de poder. Nossos corpos, quando adentram esse ambiente, o transformam. Eles visibilizam novas narrativas, novas epistemes e novas formas de sabedoria. A academia precisa aprender conosco, com nossas experiências, com nossas histórias, com o que tiramos do movimento negro.”
A escritora recuperou, ainda, a noção de “quilombismo”, evocada por Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento, para explicar a potência política das ações afirmativas e da organização coletiva: “Formar quilombos dentro de um espaço que tantas vezes não nos quer é necessário. As ações afirmativas nascem dessa tradição de resistência. Não podemos nos enganar: não somos bem aceitos de imediato. Mas chega um momento em que se torna difícil lutar contra a nossa força coletiva. É o coletivo que sustenta a permanência dos nossos corpos no espaço de poder”.
No decorrer de sua fala, Conceição compartilhou histórias familiares, lembrando a trajetória de sua mãe e sua tia, trabalhadoras da lavoura que enfrentaram xenofobia e desigualdade de gênero e raça. A narrativa serviu de metáfora para a importância do trabalho coletivo e da resistência cotidiana. “Essas mulheres se juntaram, criaram mutirões e mostraram que seu trabalho rendia tanto quanto — ou mais que — o dos homens. Essa história, que não está escrita nos registros oficiais, mostra como nossas práticas de vida produzem outras sabedorias. Registrar isso importa. O registro conta. E a luta pela heteroidentificação também é uma luta pela memória.”
Evaristo também compartilhou um momento íntimo: a aproximação de seu aniversário de 79 anos. “Celebro esse corpo negro que chega aos 79 anos lúcido, respeitado, colhendo frutos de uma vida de luta. Estar aqui, entre corpos semelhantes ao meu, é profundamente emocionante.”

Formação que fortalece a política antirracista nos espaços de poder
Desde sua primeira edição, o Curso de Formação para Atuação nas Comissões de Heteroidentificação tem sido indispensável para garantir que a política de ações afirmativas seja efetivada com responsabilidade e transparência na UFRJ. Com aulas ministradas por especialistas em relações raciais, antropologia, direitos humanos e políticas públicas, a formação aprofunda os critérios fenotípicos, discute o racismo e apresenta experiências nacionais sobre o tema.
A Sgaada destaca ainda o caráter coletivo da construção das ações afirmativas na Universidade, ressaltando que a participação dos cursistas se estende para além do espaço da banca. Muitos deles se tornam multiplicadores de debates sobre raça, justiça e equidade em seus institutos e centros acadêmicos.
O encerramento com Conceição Evaristo reforçou essa dimensão simbólica e política do curso. Para os participantes, a manhã no CT serviu como um chamado à continuidade da luta por uma Universidade plural, diversa e representativa. Ao final, a escritora resumiu o sentimento compartilhado por grande parte da plateia: “Estamos no caminho certo. As nossas presenças tiram o mofo da academia. Somos nós que damos vida aos espaços que antes não nos queriam. E continuaremos”.
A 9ª edição do Curso de Heteroidentificação termina deixando marcas profundas na comunidade universitária. Entre práticas, debates e trocas, consolidou-se um ambiente que reafirma a necessidade da luta antirracista como política institucional permanente.
As palavras de Conceição Evaristo, carregadas de afeto, crítica e sabedoria, ecoaram no auditório como lembrete e compromisso: proteger as ações afirmativas é proteger a memória, a dignidade e o direito à educação pública de milhares de brasileiros e brasileiras. Encerrar o curso com sua presença foi, de fato, encerrar com chave de ouro.
Por Ana Clara Ferreira e Vanessa Almeida
