As metrópoles brasileiras não podem ser lidas apenas pelos arranha-céus, pelo trânsito caótico ou pelas desigualdades visíveis nos territórios urbanos. Para o economista Marcelo Gomes Ribeiro, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro do Comitê Gestor Nacional do Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (INCT) e coordenador do Observatório das Metrópoles no Núcleo Rio de Janeiro, a chave para compreender as transformações e persistências das desigualdades sociais está dentro das casas. Seu livro, Estrutura Social Familiar nas Metrópoles Brasileiras (Letra Capital, 2025), propõe uma abordagem inédita: analisar a sociedade a partir das famílias e não apenas dos indivíduos.
Para Ribeiro, a abordagem tradicional da Sociologia, que classifica a estrutura social com base em características individuais, como a ocupação no mercado de trabalho, não captura a complexidade de como a vida é, de fato, reproduzida na sociedade. “O nosso interesse seria avançar numa perspectiva de entender como é que se dão as estratégias de reprodução social. Só que essas estratégias não se constituem de modo individual; elas passam principalmente pelas famílias.”
O livro, resultado da primeira fase do estudo, construiu uma representação da estrutura social familiar para o conjunto das metrópoles brasileiras. A análise foi realizada a partir de cinco dimensões consideradas estruturantes: a composição de renda, que mede o tipo e o nível de renda que as famílias possuem se vem do trabalho, aposentadoria, transferências governamentais ou aplicações financeiras; o arranjo familiar, que procura entender como as famílias estão configuradas, como mãe solo com filhos, casal com filhos ou unipessoal; o clima educativo, que apresenta a média de escolaridade dos membros da família com 25 anos ou mais, o que influencia as novas gerações; a configuração de classe, que mostra se a família é de classe dominante, intermediária ou popular e, por fim, a composição racial, cuja dimensão é vista como estruturante no Brasil.
O estudo, baseado em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE 2017-2018), classificou os lares metropolitanos em sete posições sociais familiares: alta, média-alta I, média-alta II, média I, média II, baixa I e baixa II. Essa tipologia, quando combinada às cinco dimensões estruturantes, retrata como os grupos familiares se organizam, reproduzem suas condições de vida ao longo das gerações e envolvem escolhas sobre educação, formas de lazer, gastos e até sobre como manter ou tentar superar a posição social herdada.
Para o pesquisador, enxergar a sociedade por meio das famílias permite captar os mecanismos invisíveis que mantêm (ou rompem) ciclos de desigualdade. “Alguém que nasce em uma família de classe popular pode ter pais que buscam dar acesso à escola e a oportunidades melhores aos filhos. Já famílias de classe média ou alta pensam em como preservar as condições que conquistaram”, observa.
Os resultados revelam a profundidade das desigualdades brasileiras. Enquanto famílias da posição alta são formadas por pessoas brancas, com alta escolaridade e rendas protegidas pelo mercado formal, as posições baixa I e baixa II reúnem, majoritariamente, famílias negras, com baixa escolaridade e rendimentos oriundos do trabalho informal.
Apesar de as pessoas negras serem maioria nas metrópoles, a proporção de famílias monorraciais negras é menor do que a de brancas. Essa diferença se traduz em desigualdades concretas: menor renda per capita e níveis mais baixos de escolaridade entre famílias negras.
Reprodução social como chave da análise
O conceito de “reprodução social”, central no estudo, é entendido em dois planos: a manutenção da vida cotidiana e a transmissão ou mesmo transformação da posição social entre gerações. “As famílias estão constantemente traçando estratégias, mesmo que não pensem conscientemente nisso. Desde a escola escolhida até o tipo de alimentação, tudo se conecta ao futuro dos filhos e ao lugar que a família ocupará na sociedade”, afirma Ribeiro.
Um dos pontos metodológicos inovadores foi a adaptação dos princípios de integração econômica de Karl Polanyi – mercado, redistribuição, reciprocidade e domesticidade – à realidade brasileira. Essa lente permite classificar as diferentes fontes de renda das famílias, revelando nuances pouco exploradas até então. Ao mostrar como as famílias combinam rendimentos do trabalho, transferências governamentais, apoio comunitário e recursos domésticos, o estudo amplia a compreensão sobre os mecanismos cotidianos que sustentam suas estratégias de reprodução social.
O trabalho, no entanto, não é estático. Se eu estou considerando que existem estratégias de reprodução social, significa também que essa estrutura está em movimento e tende a se modificar”, salienta. A pesquisa futura do Observatório das Metrópoles pretende voltar a dados anteriores para ver como a estrutura social se modificou ao longo do tempo, investigando a mobilidade social e como as estratégias das famílias, conscientes ou não, moldam novas formas de organização familiar e relações sociais. “Eu acredito que vai ser revelado quando a gente conseguir pegar em termos de mudanças históricas, ao longo do tempo”. Além disso, o professor sugere que a estrutura social pode variar entre diferentes metrópoles, influenciada por fatores regionais e econômicos específicos.
Ao propor essa nova representação da estrutura social, o Observatório das Metrópoles amplia o debate sobre desigualdade no Brasil. Para Ribeiro, compreender como os lares se organizam é fundamental para pensar políticas públicas eficazes. “Se queremos enfrentar desigualdades urbanas, precisamos olhar para as famílias como atores centrais da reprodução social. É nelas que se decide, todos os dias, quem terá acesso a oportunidades e quem ficará para trás”, concluiu.
*Sob a supervisão da jornalista Vanessa Almeida
