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Ser-mulher: pensando as mulheridades

Para refletir sobre o Dia Internacional da Mulher, uma entrevista com a pesquisadora Flavia F. Silva

O que é ser-mulher? Essa é uma das perguntas principais da tese de doutorado Natureza e cultura: mulheridades em corpos plurais, da psicóloga Flavia F. Silva. Sua pesquisa tem como uma das bases principais o conceito de mulheridade, cunhado pela intelectual estadunidense bell hooks. A autora, reconhecida por obras como O feminismo é para todo mundo, defendia que a sua mulheridade, enquanto uma mulher negra, não era absorvida pelo movimento feminista tradicional. Na entrevista abaixo, Flavia põe em xeque a ideia de um padrão do que é ser mulher e aponta caminhos que abracem e conversem com corpos dissidentes, tais quais mulheres lésbicas, travestis, transexuais e LGBTQIAPN+. 

Conexão UFRJ: Essa questão da mulheridade você traz como um conceito importante para entender esse ser-mulher. O que seria essa mulheridade? 

Flavia: A própria bell hooks, quando fala de mulheridades, fala de não ter mulheridade suficiente para dar conta de um determinado formato de ser-mulher. Ela tá fazendo uma crítica ao feminismo branco, que não abarca as mulheres negras. Quando ela traz “eu não tinha mulheridade suficiente para alcançar isso”, fui pensar em todos os corpos ditos “mulher”. E por que ditos “mulher”? Porque, quando a gente fala de mulheridades, não dá para colocar nesse conceito só mulher e ponto. Tem aquelas que mais se aproximam de um conceito de mulher universalizado e tem uma gradação que vai se afastando e, quanto mais se afasta, mais essa construção de uma existência para além dessa mulher precisa ser firmada. É como se houvesse sempre um questionamento: “É uma mulher, não é uma mulher? É uma mulher suficiente ou não é uma mulher suficiente?” Então, mulheridades acaba abarcando uma espécie de identitarismo da existência de um gesto que é dito mulher, mas que está para além dessa mulher absoluta. Não sei nem se o termo “mulher absoluta” é o melhor, porque sujeito absoluto é só o homem branco eurocentrado. A mulher absoluta não existe exatamente, mas existe uma espécie de um padrão, um conceito do que é ser uma mulher certa e ninguém atinge ele. Nem a mulher considerada mais padrãozinho, que pode ser loira, de olho azul e magra, não vai atingir. Ela vai ser cobrada em algum aspecto. Só que isso vai criando uma gradação de quem tá mais afastado e de quem tá mais perto. Os corpos ditos dissidentes – lésbicas, mulheres trans, travestis, todas as letras do LGBTQIA+ – tá todo mundo lá no final. 

Conexão UFRJ: Como essa questão dessa mulher absoluta se liga com a questão do feminismo tradicional, que seria o feminismo branco? E como essa questão com o gênero aparece a partir dessas outras perspectivas mais dissidentes?

Tenho a sensação de que o feminismo traz essa perspectiva de que a mulher seria universalizada e de que todas as questões ligadas à mulher estão ligadas a uma forma de ser mulher. A gente pode ir lá para o sufrágio, em que elas [mulheres brancas à frente do movimento feminista] solicitavam trabalhar fora de casa e o direito ao voto, enquanto as mulheres negras estavam nas casas delas trabalhando. Isso era uma coisa que não passava por esse horizonte da mulher negra, por exemplo. Não se falava ainda em uma fluidez de orientação de desejo. Então, esse feminismo universaliza, inclusive, as próprias questões. Universaliza aquilo que demanda do mundo. E tem uma outra série de mulheres que vão solicitar outras coisas e que tem outras demandas que esse feminismo não olhava e ainda não olha. É um feminismo excludente. Acho que tem algo que é para além, que eu trabalho na tese também: conseguir entender que existem outras possibilidades de mulheridades em outras culturas. Essa mulher é universalizada de uma maneira eurocentrada, porque, se a gente vai para os povos iorubás pré-colonização, gênero não se divide dessa forma. Para muitos povos nativos, gênero não é um uma organização social como é pensado no Ocidente. Então, quando você vai pensar o feminismo tradicional, esse termo que você trouxe, tudo o que é tradicional acaba sendo conservador. Eu acho arriscado a gente dizer que o feminismo é conservador. Mas, se você tenta manter algo dentro de uma tradição, se você tenta manter o conceito de mulher hermeticamente fechado sem permitir as demandas de outras possibilidades de existência para além daquilo que é dito universal, de alguma maneira você tá fazendo uma conservação de algo. Então, hoje, pensar em feminismos, a partir de outros lugares que quebrem com esse lugar dito tradicional, é urgente. 

Conexão UFRJ: Você poderia falar um pouco sobre essas outras formas de organização de gênero que você citou? 

Flavia: Quando eu fui buscar a Oyèrónkẹ [Oyěwùmí]*, foi porque eu precisava trazer para tese outras perspectivas que não universalizassem a mulher. Porque, se a gente diz que a mulher é sempre vista dessa forma, a gente não vai desconstruir gênero, só vamos marcar que gênero é a mesma coisa. Então, eu precisava ali de outros horizontes, mas eu não queria só trabalhar com os povos iorubás, porque eu queria falar mais da gente a nível Brasil. Quando a gente vai falar dos povos iorubás, a gente tá falando de Brasil, quando a gente soma também com os indígenas e com todo esse movimento que foi feito de colonização das nossas terras. Quando a gente vai pensar pré-colonização, as organizações eram feitas de maneira comunitária. Tem até uma frase que eu gosto muito que está na tese, de uma mulher do povo xavante, em que ela diz: “Quando você viola uma mulher xavante, você tá violando todo o povo xavante”. Os corpos com útero são corpos produtores de gente. Eles são vistos como uma fábrica de mão de obra e uma fábrica de consumidores. Uma fábrica inclusive de proprietários, dependendo da classe que a gente tá olhando. Então, se a gente vai violar um corpo e um povo, violar as mulheres desse povo é extremamente importante para esse violador, para esse colonizador. O conceito, a marcação de gênero e o binarismo, de uma maneira geral, estão completamente conectados com política e economia. Enquanto isso, nesses povos que são originários, a organização econômico-financeira não era dessa natureza da qual a gente vê hoje. Eles não tinham uma organização neoliberal capitalista da forma que a gente tem hoje. Eram povos que lidavam com uma comunidade. E as mulheres, as pessoas com úteros, tinham um lugar privilegiado como pessoas que precisavam ser resguardadas caso elas quisessem reproduzir. Eu tenho essa visão de quanto a questão socioeconômica faz essa virada. E aí, sim, a gente teria que voltar. É um exercício. É quase andar no movimento contrário de uma esteira ergométrica. 

Conexão UFRJ: A partir dessa perspectiva e de tudo que você tá trazendo, como seria repensar talvez essa própria questão do Dia da Mulher?

Flavia: O Dia da Mulher é um tema. Aliás, todo dia disso ou daquilo traz questões muito complexas de a gente pensar. Tem um lugar de visibilidade e representatividade de direitos que traz um olhar interessante, mas também tem algo que para mim é muito complexo. Tudo aquilo que precisa ser nomeado significa que não está incluso. Então, se eu preciso dizer que o feminismo é negro, é porque o feminismo não abarca as mulheres negras. Se eu preciso dizer que um determinado bar é LGBTQIA+, é porque nem todo bar vai acolher pessoas LGBTQIA+. Se eu preciso dizer que tem um dia para um determinado movimento, para uma determinada raça, para uma determinada maneira de existência, é porque essa existência não tá inclusa no mundo. Com o passar do tempo, isso vai sendo absorvido de tal maneira pelo capitalismo que vai transformando esses conceitos, que viram quase um paliativo. Inclusive se torce esses conceitos, se torce esses dias, se torce inclusive a luta política para dizer assim: “Vocês são privilegiados porque têm isso, porque têm uma data, porque têm marcha, porque têm não sei o quê”. E a própria comunidade passa a olhar com um olhar crítico que transgride o motivo pelo qual aquilo foi criado. Volto a dizer: é criado porque a sociedade é excludente. É no movimento de exclusão que a gente precisa nomear as coisas. Senão, não precisava ser nomeado.

Conexão UFRJ: Sobre o ser mulher, que é uma pergunta que você faz logo no começo da sua pesquisa, a qual conclusão você chega? O que seria ser mulher diante do contexto que a gente vive hoje? Quem pode de fato ser mulher?

Flavia: Quando eu termino a tese, eu não coloco lá como conclusões finais. Eu uso um outro termo: “gesticulando uma conclusão que não é encerramento, é abertura”. Porque de fato não tem como a gente chegar numa resposta. Até porque, se a gente chegar numa resposta, a gente vai fechar hermeticamente de novo. Não é essa a intenção. Tô trazendo aqui vários corpos que se afastam desse corpo que é dito padrão. Esses corpos são corpos que abrem possibilidade de existência. São esses corpos que a preços altíssimos vão trazer liberdade, inclusive para quem tá na outra ponta, para quem tá mais perto daquilo que é considerado padrão. Porque o padrão aprisiona. Ou eu existo dentro do padrão, ou a sociedade vai me excluir. Então, eu fico aprisionada vivendo o padrão. E são exatamente os corpos que são lidos e ditos como os dissidentes que vão dizer: “Podemos ser livres para gesticular no mundo do jeito que a gente quiser”. E aí a gente consegue chegar nesse Ser com s maiúsculo, que fala da existência. Eu costumo dizer que o primeiro pelotão, normalmente, são os corpos que estão mais afastados. Esses corpos são os corpos que conseguem mais direitos, vão abrir no facão a possibilidade de existência. Os corpos que estão lá atrás, que são os corpos mais próximos de um padrão, sequer sabem que tem corpos lá na frente abrindo o caminho para a liberdade desses outros grupos que estão atrás. Então, eu acho que a conclusão da tese fala mais desse lugar de liberdade e de possibilidade de outras existências a preços muito altos, porque a gente ainda não chegou no lugar em que a gente não precisa nomear as coisas. 

Conexão UFRJ: Infelizmente.

Flavia: Exatamente. E acho que ainda tem muito chão. 

Flavia F. Silva é Gestalt-terapeuta, doutora e mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da UFRJ. Além disso, é especialista em sexualidade com ênfase em gênero e pesquisa em mulheridades. Autora de artigos e capítulos de livros no campo de estudos de gênero, é professora, supervisora e orientadora científica em diversos cursos de pós-graduação e especialização clínica. 

*pesquisadora nigeriana que estuda gênero entre os iorubás.