Vinte e um de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Oficializada em dezembro de 2017, a data foi escolhida depois da morte de Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda de Ogum. O terreiro de candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, fundado por ela, em Salvador, foi invadido por um grupo de extremistas evangélicos em 2000. No mesmo ano, Mãe Gilda veio a falecer, vítima de um infarto fulminante. De acordo com sua família, sua morte foi consequência das agressões físicas, verbais e morais que sofreu durante a invasão. Anualmente, o dia 21/1 relembra não só a morte de Mãe Gilda, mas uma série de episódios que formam o retrato da intolerância religiosa no país.
Toda atitude agressiva e odiosa a outras religiões, crenças, rituais e práticas religiosas pode ser caracterizada como intolerância religiosa. A Lei nº 9.459, de 1997, que alterou a Norma nº 7.716/89, definiu a prática como crime, com pena prevista de multa e reclusão de um a três anos. Levantamentos governamentais que investigam e analisam esse crime mostram um cenário preocupante.
Apesar de, oficialmente, o Brasil ser um Estado laico – em que existe uma separação entre Estado e religião -, os números mais recentes, de 2010, apontam que a maioria da população é constituída por cristãos: 64,6% (123 milhões) de brasileiros se declararam católicos, seguidos de 22,2% (42,3 milhões) de evangélicos, 8% (15 milhões) de pessoas sem religião, 2% (3,8 milhões) de espíritas e 3,2% de outras religiões, com destaque para 0,7% (1,4 milhão) de testemunhas de Jeová e 0,3% (588 mil) de religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé. Apesar de ter sido realizado há mais de dois anos, o Censo 2022 do IBGE ainda não forneceu dados sobre o perfil religioso do país.
O fato de a população brasileira ser majoritariamente constituída por um grupo religioso não faria muita diferença na sociedade se não fosse um fato: somos um país que comete intolerância religiosa, de forma, inclusive, agressiva. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), em 2023 foram contabilizadas mais de 1.400 denúncias em nível nacional, um salto de 140% em relação aos cinco anos anteriores. Para as violações, que são casos de violência que envolvem a intolerância, o aumento é ainda maior: 240%, que representa 2.124 casos, uma média de quase seis casos por dia. Segundo a Ouvidoria do ministério, no pódio das religiões que mais sofrem ataques estão a Umbanda, o Candomblé e outras manifestações afro-brasileiras. Dentre os estados em que o crime mais ocorre, o destaque fica com São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Esse ainda é um problema nacional que tem cor, classe social e gênero.
Intolerância religiosa e racismo religioso: há diferença?
O termo “intolerância religiosa” pode, por vezes, mascarar e ser um eufemismo para ações racistas quando a agressão é dirigida a religiões de matriz africana. O processo de escravização e colonização que foi imposto a negros em diáspora, quando houve a migração forçada para fora de seus territórios originais, é marcado pela desumanização dos povos africanos, juntamente com suas culturas e conhecimentos. As religiões africanas passaram por um processo de demonização, que se mantém vivo até a atualidade.
O Código Penal de 1890, dois anos após a abolição da escravidão, em seu Artigo 157, criminalizou o espiritismo, considerando-o um crime contra a saúde pública. A punição para os praticantes era de prisão de até seis meses e multa. Apesar de a Constituição de 1891 já consolidar a laicidade do Estado, tudo que era considerado espiritismo não era visto como religião, mas sim como práticas de magia. A criminalização só foi encerrada com a promulgação do Código Penal de 1940, dando fim a um ciclo de 50 anos de ilegalidade aos praticantes.
Tauan Satyro, doutorando em História Comparada na UFRJ, destaca o papel da colonialidade – continuidade das relações de poder e dominação oriundas do período de escravidão, mesmo depois que ele foi encerrado oficialmente – no racismo religioso: “Há uma herança colonial nesse processo de intolerância, principalmente contra as religiões de matriz africana”. Segundo o pesquisador, o racismo religioso faz parte da estrutura da nossa sociedade e o caminho para mudar essa realidade passa pela educação. Por isso Satyro destaca a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas públicas e particulares do país. Em 2008, a Lei nº 11.645 acrescentou a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Indígena no Brasil, atualizando as medidas já outorgadas em 2003. As manifestações e crenças da população originária formam outro grupo que sofre constantemente com ataques de cunho religioso. “Alimentar pesquisas e estudos relacionados na Universidade sobre essas práticas criminosas é um enfrentamento à intolerância, possibilitando a criação de alternativas para esse problema social”, afirma o pesquisador.
Para Satyro, os obstáculos enfrentados para a plena aplicação nos ensinos médio e fundamental passam pelos pais e familiares, que ainda não recebem bem o conteúdo ensinado aos seus filhos, e também pelos próprios diretores escolares. Sobre o cenário no ensino superior, o ambiente não é muito diferente: “até dentro da Universidade há uma defasagem desse tema. Quando vou a eventos, dou palestras ou participo de seminários sobre o assunto, ainda há resistência”, afirma. Para Satyro, ações de intolerância religiosa são, ao mesmo tempo, formas de demonstração de poder, havendo uma disputa de interesses nesse campo, inclusive política.
Para denunciar qualquer caso de intolerância ou racismo religioso, você pode ligar para o Disque 100 ou para o número (61) 99611-0100, via WhatsApp. Também pode entrar em contato pelo Telegram, digitando “direitoshumanosbrasil” na busca do aplicativo, ou pelo site do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que também fornece ferramentas de acessibilidade para deficientes auditivos. Todos os formatos de denúncia funcionam de forma gratuita e permitem que a pessoa acompanhe o caso por meio de um protocolo. Os casos também podem ser submetidos a qualquer Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).
*Texto coescrito e supervisionado por Vanessa Almeida