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20 anos da Lei nº 10.639: como estamos hoje?

Na segunda edição do especial sobre a regulamentação, o Conexão UFRJ traz os avanços na implementação da norma nas últimas duas décadas

Em 2003, a Lei nº 10.639 chegava à legislação brasileira com a proposta de trazer consigo uma mudança nas estruturas curriculares de escolas dos ensinos Fundamental e Médio, tanto em estabelecimentos públicos quanto em particulares. Ao longo de vinte anos, muita coisa aconteceu: a Lei de Cotas foi aprovada em 2012 e as pautas raciais se tornaram mais discutidas na Universidade e nos meios de comunicação. No entanto, vale perguntar: como esse processo se desenvolveu nos objetos principais dessa legislação, as escolas? 

Nas últimas semanas, o Conexão UFRJ visitou instituições de ensino e conversou com gestores e professores à frente dos diversos movimentos de concretização da lei, encontrando diferentes realidades.  

Implementação

Logo após a aprovação da lei, as secretarias municipais da Educação foram algumas das principais responsáveis pelo processo de implementação das diretrizes  nos espaços de ensino. No entanto, as ações foram muito variáveis, mudando de cidade para cidade e de região para região, além de não serem unanimidade. Apesar de duas décadas de aprovação, os números não se mostraram tão animadores. 

Dados da pesquisa Lei nº 10.639, A Atuação das Secretarias Municipais de Educação no Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, realizada pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana, em 2023, mostram que “apenas 5% dos municípios afirmam ter implementado uma área técnica dedicada à agenda da educação para as relações étnico-raciais e só 8% das secretarias dizem ter dotação orçamentária específica”.

Além disso, dezoito por cento das secretarias não realizam nenhum tipo de ação para assegurar um currículo racialmente justo e que proporcione experiência escolar digna para todas as crianças e adolescentes. O estudo explicita ainda que os gestores municipais sentem falta de apoio dos estados e do governo federal para o cumprimento do que é estabelecido na norma, tanto em ações diretas como a partir de cooperação técnica e financeira. 

Apesar de ser uma lei que representa política pública, a pesquisa de Edmilson Ferreira, técnico em Assuntos Educacionais, doutor em Educação e pós-doutorando em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que em muitos casos as ações de implementação dependem da motivação e persistência de indivíduos ou pequenos grupos de professores, em sua maioria negros. No entanto, o pesquisador enxerga que, apesar das dificuldades existentes, as diretrizes da Lei nº 10.639 estão tendo capilaridade, mas precisam de continuidade. 

Professora negra auxilia uma aluna.
Professores negros em sala auxiliam na aplicação da lei. | Foto: Ana Marina Coutinho (SGCOM/UFRJ)

“Não está sendo uma lei que não funcionou, mas ainda há muito trabalho a ser feito, sobretudo quando a gente tem boa parte do corpo docente branco, como no caso do UFRJ. Na escola, em geral, nós temos um número maior de professoras negras, mas essa percepção sobre as necessidades de se fazer um debate crítico e se construir uma discussão em torno do letramento racial ainda é bastante necessária”, explica ele.

Uma das dificuldades apontadas também é conseguir fazer com que o ensino dessas pautas seja entendido para além de datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra e o Dia da Mulher Latino-Americana e Caribenha. 

Resistência

Assim que a Lei nº 10.639 foi publicada, a primeira reação geral, segundo a maioria dos nossos entrevistados, foi de resistência. Por serem temas ainda desconhecidos pelos docentes em geral, foi enfrentada a dificuldade de trazer as temáticas para os currículos. Até hoje ainda é comum encontrar profissionais que afirmam não tratar desses temas por não terem conhecimento sobre eles, apesar de ser uma obrigatoriedade de mais de vinte anos. 

As dificuldades, porém, não impedem algumas instituições de encontrar formas de institucionalizar propostas que fortalecem as diretrizes da lei. É o caso do Comitê Permanente da Educação para as Relações Étnico-Raciais do Colégio de Aplicação  (Erer/CAp) da UFRJ, que começou a se desenvolver com a implementação das políticas de ação afirmativa no colégio, em 2019. Com a chegada da pandemia e a necessidade de isolamento, após o retorno ao presencial, a escola vivenciou grandes mudanças quanto ao perfil dos alunos, e isso aumentou os casos de racismo. 

O CAp/UFRJ fica no bairro da Lagoa, Zona Sul do Rio. E, subitamente, estudantes das classes média e média-alta que residiam no entorno e estavam matriculados na escola tiveram de passar a conviver com alunos de outras regiões da cidade, como a favela Vila Aliança, na Maré, e até o município de Itaboraí. É o que conta o coordenador do comitê, Jorge Marçal, formado em Ciências Biológicas pela UFRJ e professor efetivo da carreira de magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT). 

Corredor com um jovem negro caminhando e um cartaz escrito "O que é quilombismo?"
Os corredores do Cap/UFRJ com atividades que contemplam a Lei 10.639. | Foto: Ana Marina Coutinho (SGCOM/UFRJ)

Vinculado ao conselho-diretor da escola, o Erer hoje é uma política institucional que auxilia na implementação da lei e tem o objetivo tanto de realizar atividades de formação voltadas para o corpo docente pensar relações étnico-raciais quanto auxiliar no enfrentamento dos casos de racismo. Para Marçal, no entanto, ainda existe desequilíbrio, já que se nota movimentação muito maior na Educação Infantil e Fundamental do que no Ensino Médio, por exemplo.

“A gente tem atividades muito fortes acontecendo na Educação Infantil e nos anos iniciais do (Ensino) Fundamental, com alguma força nos anos finais do Fundamental… Mas que ainda encontram algumas resistências no Ensino Médio. Existem, mas muito por ação de alguns professores específicos. O Ensino Médio ainda é uma barreira que a gente precisa enfrentar, ainda mais porque tem aquela pressão do Enem”, explica. 

A busca pelo equilíbrio 

Partindo para um cenário de instituições privadas, é possível observar os contrastes entre escolas que se denominam antirracistas, e foram fundadas com base em conceitos como letramento racial, e outras que não têm nenhuma movimentação a fim de implementar a lei ou abordar pautas étnico-raciais. 

Um dos espaços que visitamos, localizado na Zona Sul da cidade, foi idealizado a partir da busca dos pais por um local para a Educação Infantil que trouxesse alternativas pedagógicas diferentes do tradicional. No entanto, a localização, em um dos bairros mais ricos da cidade, o Cosme Velho, fez com que a até então creche não estivesse sendo democrática racialmente, o que foi apontado pela mãe de uma criança negra. 

A partir de então, a instituição expandiu-se e os gestores e idealizadores – uma mulher negra e um homem branco – começaram a buscar outras formas de organizar o ensino e a escola a fim de que , tivessem como bases os conceitos de antirracismo, letramento racial e oralidade. Dessa forma, entre as ações nesse sentido estão o fornecimento de bolsas prioritárias a crianças negras, a contratação de professores negros e a abordagem das temáticas étnico-raciais a partir de um viés transdisciplinar. 

Com turmas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, a escola ainda garante que, ao assinar o contrato, os responsáveis comprometem-se a fazer cinco módulos de aula de ensinamentos básicos sobre relações étnico-raciais, entendendo que a relação dos pais com os alunos é primordial para que o trabalho da escola tenha mais alcance. 

Na contramão do movimento, no município de Caxias, localizado na Baixada Fluminense, encontramos a realidade de uma escola que chegou a ser processada por não abordar em sala as diretrizes obrigatórias previstas pela Lei nº 10.639. Apesar de, na região e no próprio estabelecimento, a maioria dos alunos ser negra, uma funcionária que prefere não se identificar conta que isso não era prioridade para os gestores do espaço. 

Um homem negro veste uma camisa azul enquanto conversa com alguém.
Jorge Marçal, coordenador do Erer/Cap. | Foto: Ana Marina Coutinho (SGCOM/UFRJ)

O coordenador do Erer do Colégio de Aplicação da UFRJ defende a necessidade de as instituições de ensino enxergarem a importância da inserção de pautas e diretrizes da lei em todo o currículo de ensino, já que o racismo estrutural também se faz presente de forma onipresente na sociedade.  

“Não é uma questão só de conscientizar o corpo da escola de que é necessário trabalhar as questões étnico-raciais, que é uma missão dos movimentos negros e indígenas na educação. A gente tem uma lei de 20 anos, que é a Lei nº 10.639, que ainda hoje a gente precisa lutar para que ela seja de fato discutida na escola, para que as pessoas entendam que isso não é uma questão da disciplina de história, da disciplina de artes, da disciplina de literatura. Isso é uma questão que tem que perpassar todo o currículo escolar”, conclui.