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Editora UFRJ lança livro que analisa obras de Pancetti

“Pancetti: moderno e periférico” traz olhar crítico para as pinturas do artista

O que existe além de praias de águas verdes nas obras de Giuseppe Pancetti? O artista, falecido em 1958, ficou conhecido como “o pintor das marinhas”, mas compôs um acervo de quadros com representações críticas da sociedade, que não são facilmente encontradas. Por isso, a Editora UFRJ lançou, neste mês, o livro Pancetti: moderno e periférico. Nele, o professor Felipe Scovino, da Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ), analisou o que passa despercebido ao espectador, destacando os aspectos sociais e psicológicos que influenciaram a produção artística de Pancetti. 

A obra expõe a grandeza sensível do pintor, que é pouco conhecida. Logo, nada mais justo que espalhar esse conhecimento, o qual carrega uma outra visão sobre as pinturas de Pancetti. Neste mês, a Editora UFRJ promoveu  uma conversa com o autor, Felipe Scovino, e com o professor Frederico Carvalho na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ). O evento teve distribuição de cem exemplares físicos do livro, que também está disponível em formato digital gratuitamente no site da Editora.

Em Pancetti: moderno e periférico, Scovino analisa as escolhas pictóricas, enquadramentos, referências, distinções e as questões sociais e psicológicas envolvidas nas pinturas do artista.  A percepção detalhada do autor aprofunda a visão das críticas feitas por Pancetti. Segundo o professor, “é importante não confundir, mais uma vez, o aspecto solitário e triste das figuras como algo poético e conveniente, porque suas pinturas também precisam ser analisadas como uma crítica, por exemplo, às condições precárias de vida da sociedade”. 

Para entendermos mais da relevância de Pancetti e os caminhos de sua produção, o Conexão UFRJ conversou com o professor Felipe Scovino. Confira a entrevista a seguir:

Conexão UFRJ: Quais são as características marcantes nas pinturas de Pancetti? O que significa a expressão “moderno periférico”, com que o senhor classifica Pancetti, e o que é a melancolia e/ou mitologia do marinheiro?

Felipe Scovino: Qualifico Pancetti como periférico não pelo ponto de vista institucional, já que, em meados dos anos 1940, passa a ter rápido reconhecimento das instituições, nem mercadológico, já que, por exemplo, nos últimos anos de vida, a venda de obras era massiva, mas exatamente pelas razões que o levaram a ter essa saudável carreira no meio das artes. Conhecido como o “marinheiro que pintava marinhas”, o “pintor de belas marinhas” ou adjetivações do gênero, Pancetti teve sua obra intimamente conectada, para o público em geral e parte significativa da crítica da época, a uma ideia de beleza que se confundia com a ilustração e não problematização de um cenário. Essa é uma diferença fundamental e razão do desvio que quero incentivar sobre a análise crítica de sua obra. Interpretar a “beleza” de Pancetti a partir da sua capacidade de mimetizar a natureza ou evidenciar de forma rasa a melancolia do marinheiro ou ainda uma mitologia do marinheiro artista é deixá-lo, me parece, nessa zona insossa e cruel. Sua obra explora novos enquadramentos, enfatizando ângulos e perspectivas não usuais e levando a pintura moderna brasileira para um terreno pouco explorado, pois suas preocupações são muitas vezes genuinamente sociopolíticas, evidenciando camadas populares e auxiliando na construção de uma cultura visual ou história das imagens muito incipiente na história da arte brasileira – é importante dizer que essa manobra se fazia com a preocupação de não tornar exótica a pobreza ou expor a celebração “espontânea” da alegria e da fé do brasileiro mesmo em condições adversas. Não havia espaço para esse tipo de perversidade em sua obra, o que já o distancia de certa produção modernista. E a presença da melancolia, tão propalada, possui um arcabouço mais denso do que a simplória e débil imagem do artista atormentado.

Pancetti é um inventor de perspectivas, não só no âmbito pictórico, mas enquanto método humanista ou social, que não eram adotados com frequência no contexto moderno brasileiro, ao menos com o olhar que empregava. Eu o aproximaria de Goeldi e suas paisagens familiarmente estranhas e condicionadas a uma atmosfera sinistra, melancólica e solitária. Ambos parecem procurar, nos lugares mais afastados, os excluídos, os que ficam à margem das transformações modernas, especialmente, no caso de Pancetti, quando ele se volta para o interior do país ou o litoral baiano. Tornam aparentes personagens desconhecidos que no fundo não conseguem ocultar um sentimento de mistério e solidão. Mas esse tom, em certa medida dramático, não tem o viés escapista romântico. Pelo contrário: o que aproxima esses dois “modernos periféricos” é um fazer mundano, uma aparição de cenários que os aproxima da crônica. Contudo, é preciso levar em conta que o sinistro como algo ameaçador pertence mais a Goeldi do que a Pancetti.

As características de uma perspectiva social e da melancolia, conscientemente elaboradas ou não pelo artista, são exatamente o que tornam Pancetti simultaneamente moderno e periférico, neste último caso por não terem sido suficientemente elaboradas pela crítica ou terem sido tratadas de forma superficial, apesar de exceções terem ocorrido.

Conexão UFRJ: Quais aspectos sociais e psicológicos estão presentes nas obras do artista? Como são evidenciados?

Felipe Scovino: As escolhas de Pancetti para seus retratos variavam entre o sujeito negro e/ou pobre, o louco, o camponês, a mulher, a sua autoidentificação como sujeito vindo de camadas populares (ele era filho de um pedreiro e uma lavadeira e viveu em um bairro operário em São Paulo durante a infância) e a revelação da intimidade das classes menos abastadas, traçando continuamente o seu perfil psicológico. Para além das dezenas, quiçá centenas, de obras retratando marinhas, Pancetti se voltou para a sua gente: o pescador, o sujeito subalternizado pelo patronato e que vivia em um país, nas décadas de 1940 e 1950, rasgado por um abismo social. Não estou muito certo sobre um posicionamento político de Pancetti que tenha se tornado público. Por outro lado, ele foi colaborador da campanha a favor da anistia aos presos políticos por parte da ditadura do Estado Novo em 1945, pintando um autorretrato em que aparece fardado como marinheiro tendo na fita do gorro a inscrição “anistia” e, ao fundo, figuras enlaçadas, cabisbaixas e sem os detalhes faciais, à espera de libertação. O que resta é pensarmos numa fatia da segunda geração modernista brasileira que se volta, guardadas as especificidades de cada artista, para um olhar mais político e humano, sobretudo para os mais pobres e marginalizados. São os casos de Pancetti, mas também de Djanira, Goeldi e Heitor dos Prazeres.

Conexão UFRJ: De onde surgiu a vontade de considerar esses aspectos para analisar as obras?

Felipe Scovino: Entendi que era importante evidenciar uma perspectiva política em Pancetti. Desmistificar o pintor das belas marinhas e se voltar para uma análise mais social de suas pinturas e desenhos. Desde 1979 não era publicada uma monografia sobre Pancetti. A falta de um estudo mais denso sobre o artista, depois desse largo intervalo, me levou a querer pesquisar sua obra e, graças ao edital de publicações da Editora UFRJ, a finalmente publicar o estudo.

Conexão UFRJ: Como situações sociais e psicológicas influenciaram as pinturas do artista?

Felipe Scovino: Todo artista, eu acredito, é influenciado pelo contexto em que vive. A distinção que o livro traz é pensar Pancetti para além de uma identificação segura em que ele erroneamente foi colocado, porque é uma visão restrita, como a de um pintor romântico, e avançar sobre o terreno de uma perspectiva sociopolítica. O fato de ter crescido em meio a um ambiente operário, oriundo de uma família com poucos recursos, contribuiu para o seu olhar crítico em direção a pessoas subalternizadas. Grande parte dos seus retratados eram os pescadores e suas famílias. Há uma beleza intrínseca em sua obra − a forma como opera as relações entre luz e cor é esplendorosa −, mas também há espaço para a melancolia e a atmosfera de dificuldade dessas famílias. Pancetti foi um autodidata. Sua participação no Núcleo Bernardelli − um coletivo de artistas que se encontravam nos porões da Escola Nacional de Belas Artes para produzir seus trabalhos à margem dos estudos mais dogmáticos da Escola −  foi importante para a sua formação e para intensificar o seu olhar mais social, especialmente nas trocas com  Bruno Lechowski, Milton Dacosta e Sigaud.

Conexão UFRJ: De que forma Pancetti pintava as pessoas nos retratos? Como ele retratava pessoas pobres ou negras?

Felipe Scovino: Trarei o exemplo de duas pinturas do artista para responder à indagação. Mulata (1941), do acervo da coleção Nemirovsky, e Retrato de Lourdes (sem data), da coleção Gilberto Chateaubriand, trazem contribuição significativa ao darem visibilidade a jovens negras numa sociedade substancialmente racista. 

É especialmente importante destacar que ambos os retratos não expressam figuras desalentadas, mas, ao contrário, seguras do seu estado de ser. Lourdes está com os olhos e boca cerrados e levemente cabisbaixa. Parece descontente não em ser retratada, mas por conta de forças externas (sociais? Econômicas?). A tela é pequena (34 x 26 cm) e o enquadramento, em primeiro plano e com o cabelo entrecortado, reforça a sensação de aprisionamento. Uma sombra em diagonal cortando desde o seu ombro esquerdo até a bochecha direita acentua o chiaroscuro que se dá na relação entre figura (a camisa cinzenta) e fundo (dividido entre dois planos horizontais de tons creme e amarronzado). Pancetti dialoga com tons ocre, constituindo diferentes campos cromáticos que acentuam a face de Lourdes. Seu cabelo e nariz denotam a potência da sua afirmação como mulher afro-brasileira. Mulata, comparativamente, tem um aspecto mais sereno, com seu olhar em direção ao infinito. Não encara o espectador, mas isso não a faz ser relutante. Pelo contrário, expressa segurança, o que pode ser constatado nos seus olhos negros, sem pupila e bastante arredondados e intensos. Diferentemente da Negra (1923) de Tarsila, uma figura proveniente das suas memórias da fazenda de café da sua família e das lições cubistas que recebeu em Paris, resultando numa combinação longínqua para quem desejava refletir sobre identidade nacional, estamos diante de uma jovem que vive o seu tempo. Não há alegria nem excessos, mas um olhar e postura firmes, sem abdicar de uma suavidade na forma como Pancetti a fez vir ao mundo. O cabelo também tem uma importância grande nessa pintura. Não mais entrecortado, ele aparece por inteiro, reafirmando a sua força e o orgulho de sua história e herança.

Felipe Scovino é professor do Departamento de História e Teoria da Arte e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, ambos da Escola de Belas Artes da UFRJ. É também pesquisador do grupo Nuclear (Núcleo de Livres Estudos de Arte e Cultura Contemporânea), reunindo docentes da UFRJ, UFMG e UERJ.

Baixe o livro Pancetti: moderno e periférico no site da Editora UFRJ. Acesse editora.ufrj.br, clique na aba ebook gratuito e encontre a obra.

*Sob supervisão da jornalista Carol Correia