“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.” Foi o que disse o então deputado federal Ulysses Guimarães em seu discurso durante a Assembleia Constituinte em 5/10/1988. Na ocasião, foi promulgada a “Constituição Cidadã”, um marco do início de uma nova era democrática no país. Estes 35 anos de sua promulgação trazem à tona os direitos e deveres previstos na Carta Magna.
Considerada uma referência para diversos países, a Constituição de 1988 é uma das mais extensas já escritas no mundo, com 250 artigos e mais de 1,6 mil dispositivos conhecidos como normas constitucionais. Além disso, o contexto pós-autoritário em que se deu a sua promulgação faz a Carta ainda mais importante do ponto de vista histórico, cultural e democrático. Segundo o professor Josué Medeiros, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, o Brasil teve poucas experiências democráticas no decorrer da história, por isso a atual Constituição teve um enorme impacto social e coletivo no país.
“Nunca antes tivemos um processo tão participativo que tenha envolvido tantos setores da sociedade civil. Um processo que consolidou direitos fundamentais e posicionou o Brasil no plano internacional como uma democracia. Então a nossa Constituição significa a realização tardia de um pacto social, coletivo e democrático”, diz o cientista político.
Direitos fundamentais
A Constituição é o maior conjunto de normas que rege o país. Além de direcionar o poder público e ditar as atribuições de cada instância de poder, ela também estabelece os direitos e deveres de cada cidadão brasileiro. Muitos especialistas a consideram a chave para a consolidação de um Estado democrático de direito. Dentre as determinações da Carta, estão: o direito ao voto para analfabetos e menores de idade entre 16 e 18 anos, sistema presidencialista de governo com eleição direta em dois turnos para presidente, poder judiciário como um órgão independente e, principalmente, a ampla garantia de direitos fundamentais, apresentados logo em seus primeiros artigos.
Tais direitos pressupõem não só a cidadania digna aos brasileiros, como também apontam os deveres do Estado e da sociedade para sua garantia. O Artigo 1º estabelece o Brasil como um Estado Democrático de Direito – uma forma de estado em que a soberania popular é essencial – e define seus fundamentos, como soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político. Ainda segundo o referido artigo, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” O Artigo 3º aborda os objetivos da República Federativa do Brasil. Dentre eles estão a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e a garantia do desenvolvimento nacional. Por sua vez, o Artigo 5º regulamenta a igualdade como pressuposto fundamental para a sociedade, em que diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”
O professor Luigi Bonizzato, da Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ, explica que a Constituição de 1988 estabelece diversos grupos de direitos e enfatiza que todo direito traz consigo uma obrigação, tanto de cumpri-lo quanto de estimulá-lo.
“Temos, por exemplo, o grupo de direitos à liberdade, que são chamados direitos fundamentais de primeira geração. Nossa constituição consagra demais a liberdade. A liberdade de expressão é uma das líderes desse grupo, mas também temos a de consciência, de religião, de reunião e inúmeras outras. Temos também os direitos sociais, que são os direitos fundamentais de segunda geração. Eles garantem o direito à saúde, educação, moradia, transporte, alimentação… Temos um raio extenso de direitos sociais, o que é outra marca da nossa Constituição”, explica Bonizzato, que também é constitucionalista.
Cidadania como lei
A Carta de 1988 não é chamada de Constituição Cidadã por acaso. Além dos direitos e deveres, ela também apresenta normas que não podem ser alteradas nem mesmo pelas vias de emendas constitucionais. Denominados de “cláusulas pétreas”, esses dispositivos têm como objetivo preservar a democracia e a cidadania firmadas na Constituição de 1988. Essa relação encontra-se no § 4º do art. 60 e garante o pluralismo político, o voto direto, secreto e universal, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais. Para Medeiros, apesar da dificuldade em implementar os direitos fundamentais no Brasil, a importância da Constituição está em possibilitar a reflexão, a luta e a manifestação pela cidadania, uma vez que também traz a responsabilidade dos cidadãos e do poder público em garantir tais direitos.
“Sem a política não há resolução de conflitos na democracia, porque os conflitos estão presentes na sociedade. Nós nos mobilizamos e precisamos também canalizá-los para as instituições. É a política que vai viabilizar a implementação, a garantia e a ampliação desses direitos que estão previstos na nossa Constituição”, completa.
Desafios
Mais importante do que estabelecer direitos, é implementá-los e torná-los realidade para os cidadãos. Nisto, os dois professores concordam que os desafios são cotidianos e dependem de uma série de fatores e, principalmente, uma articulação social e política em prol da contemplação dos direitos previstos no documento. “O direito sozinho não resolve. Temos que trabalhar com a Sociologia, Ciências Políticas e outras áreas. Dependemos da multi-transdisciplinaridade”, diz o professor da FND. Segundo ele, um dos principais desafios no alcance dos direitos plenos no Brasil é a diminuição da desigualdade social, presente em todo território do país e que a Constituição estabelece como um dos “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”.
Além disso, o professor também cita como um desafio à aplicação das normas o investimento pleno e constante nos direitos sociais, que dependem do olhar estatal para sua valorização, bem como do exercício de um para a ação do outro. Por exemplo, é preciso de educação e saúde para se ter acesso digno à moradia e ao trabalho.
“Precisamos canalizar investimentos na consagração dos direitos sociais. Lembrando que o direito ao trabalho faz parte dos direitos sociais. Eles estão muito conectados. Então a política pública se faz muito importante nesse processo de consolidação dos direitos. É investimento em capital humano, social e também financeiro”, finaliza Bonizzato.